cultivar_22_Final_PT

Despovoamento em áreas rurais: entre a inevitabilidade e a capacidade de transformação 45 Os efeitos demograficamente perversos de duas gerações de modernização agrícola Ao efeito de saturação de um modelo de sociedade rural incapaz de lidar com situações ecológicas e de isolamento negativas, e que as tentativas públicas de colonização interna não conseguiram contrariar, adi- cionam-se, sobretudo a partir dos anos 50 do século XX, os impactos da modernização tardia do país. À sociedade rural até então prevalecente opõe-se agora uma sociedade dua- lista, para recorrer às palavras de Adérito Sedas Nunes, que coloca em confronto, por um lado, o país urbano-indus- trial moderno, emergente, crescentemente infraestru- turado, atrativo e com níveis de educação e literacia mais elevados, e, pelo outro, o país da sociedade rural tradicio- nal, em perda demográfica, económica e social, fustigado pela emigração e pela deslocação das populações para as cidades, pelo declínio das atividades agrí- colas e por condições precárias de acessibilidade e de mobilidade física e social. É neste contexto que se generaliza o recurso à expressão “interior”, que neste âmbito é visto como opondo-se ao litoral, ao contrário do que sucedia nos livros antigos de geo- grafia, onde o “interior” correspondia ao miolo do país, isto é, às áreas que não eram nem litorais nem fronteiriças. A mecanização das atividades agrícolas, a crescente concorrência de produtos alimentares importados e a imagem social da agricultura como um setor ´do passado`, e por isso pouco atrativo para os jovens, concorrem, entre outros fatores, para acentuar o declínio demográfico dos municípios onde a saturação do modelo rural tradicional se fez sentir de forma mais precoce, mas alarga-se agora a muitos outros municípios em que as atividades agrícolas detinham um peso social e económico relevante. A emergência de uma sociedade urbano-industrial e os avanços técnico-científicos reconfiguraram as interações ecologia/comunidade/economia nas áreas rurais, com impactos demográficos evidentes. Por um lado, a modernização agrícola procura supe- rar limitações ecológicas, introduzindo espécies con- sideradas mais adequadas e novas formas de uso dos solos e de gestão da água. Ao mesmo tempo, a produção agrícola afasta-se gradualmente das comunidades locais, dispensando os seus saberes e mesmo as suas populações. Em suma, a economia dos sistemas agrícolas e agroalimentares procura ´libertar-se` das restrições ecológicas e sociais locais, recriando interações em que os ganhos de produ- tividade e competitividade implicam uma diminuição drástica da população agrí- cola e, a um nível mais gené- rico, a crescente dissociação entre áreas rurais e agricul- tura. Emerge, assim, o que alguns autores designam por rural pós-agrícola, não no sentido de afirmar que as ati- vidades agrícolas passaram a ser irrelevantes, mas sim para realçar a sua perda de centralidade social, económica e política na estrutu- ração das áreas rurais. Nas últimas décadas, o avanço da agricultura inten- siva e superintensiva, com recurso a soluções de precisão cada vez mais sofisticadas, bem como a complexificação das redes de produção e consumo alimentar, organizadas por atores diversificados e poderosos numa ótica multiescalar que em muito ultrapassa as fronteiras regionais e nacionais, ten- dem a acentuar ainda mais o divórcio entre a com- ponente economia, por um lado, e as componentes ecologia e comunidade, pelo outro, numa parte sig- nificativa das áreas rurais do nosso país. Face a estas duas ondas de modernização produti- vista dos sistemas agrícolas e agroindustriais e das redes agroalimentares de produção-distribuição- -consumo, e num contexto em que o designado rural pós-agrícola evidencia uma evidente dificuldade em suscitar economias alternativas para além das atividades de turismo rural e da natureza, o declí- … a economia dos sistemas agrícolas e agroalimentares procura ´libertar-se` das restrições ecológicas e sociais locais, recriando interações em que os ganhos de produtividade e competitividade implicam uma diminuição drástica da população agrícola e, a um nível mais genérico, a crescente dissociação entre áreas rurais e agricultura.

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