CULTIVAR 26 - Agricultura biológica e outros modos de produção sustentável

116 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 26 SETEMBRO 2022 – Agricultura biológica e outros modos de produção sustentável der que a aposta em alternativas mais sustentáveis lhes pode trazer não perdas, mas aumento de divi- dendos. Dada a controvérsia gerada, e sendo tambémmuitas das ações descritas como negativas no livro atribuí- das a programas de erradicação e controlo de pragas do Departamento de Agricultura norte-americano, o então presidente John Kennedy pediu ao seu Comité Consultivo de Ciência que investigasse as afirmações feitas por Rachel Carson. Decorrido algum tempo, durante o qual muitos outros cientistas vieram em defesa da autora, o relatório elaborado deu razão a parte das suas conclusões, recomendando, entre outras coisas, a eliminação faseada de alguns pesti- cidas considerados mais tóxicos ou persistentes. Nos anos que se seguiram à publicação de Prima- vera Silenciosa , foi aprovada nos Estados Unidos a lei sobre o controlo da qualidade do ar ( Clean Air Act , 1963) e foi estabelecida a Agência de Proteção Ambiental (EPA, 1970 9 ). Apesar das reações con- trárias, o DDT e alguns outros poluentes orgânicos persistentes foram sendo banidos para quase todos os usos nos EUA (1972 e anos seguintes) e posterior- mente noutros países 10 , e outras leis foram criadas sobre a água ( Clean Water Act , 1972), as espécies ameaçadas ( Endangered Species Act , 1973), etc. Uma das razões do êxito do livro passou por Rachel Carson ter compreendido a importância da transmis- são do conhecimento que os cientistas já detinham ao cidadão comum, escrevendo numa prosa que combinava divulgação da ciência e uma formulação 9 O site da EPA, refere explicitamente, nas suas origens, o trabalho de Carson: https://www.epa.gov/history/origins-epa 10 O que poderá ter levado a um ressurgimento de malária em países onde esta ainda não tinha sido erradicada, como acontecera nos EUA. Em 2006, a Organização Mundial de Saúde reintroduziria o DDT para combater a malária em certas situações. 11 Uma outra razão para esse êxito, além do terror nuclear que então se viveu nos EUA com a crise dos mísseis de Cuba e de alguns desastres ambientais, prende-se com o facto de, pouco antes da publicação, a talidomida ter sido proibida devido aos seus trágicos efeitos teratogé- nicos (crianças que nasciam com os membros atrofiados, por exemplo). Este medicamento, à época vendido sem receita médica também como antiemético para grávidas, fora inventado na Alemanha, mas nunca chegara a ter uma ampla distribuição comercial nos EUA, graças precisamente à persistente ação preventiva de uma mulher, Frances Oldham Kelsey, da Food and Drug Administration (FDA). 12 Palavras e expressões como “ evil ”, “ unnatural ”, “ sinister ”, “ insult ”, “ desecration ”, “ evil power ”, “ sinister touch ” são aplicadas à ação humana, sendo “ noble ”, “ paradise ”, “ beauty ”, “ unspoiled ”, “ ordered world of nature ”, “ perfect balance ”, “ inherent stability ”, “ far-reachng aims ” usadas para falar da natureza e seus processos. 13 Na bioquímica interna do ser humano, destaca, por exemplo, o risco de a introdução de certas substâncias poder vir a provocar problemas futuros de fertilidade da espécie, aumento de carcinomas em idades mais precoces, etc. (Cap.13) poética, e bastante catastrofista, cativante para o grande público. 11 Esta que é uma das forças do livropoderá ser também parte da sua fraqueza: uma visão demasiado mora- lista, que divide o mundo em “bons” e “maus”, sendo “bons” os que fazem o que à autora parece justo e adequado e “maus” todos os outros, parecendo des- considerar que todas as ações humanas fazem parte de um processo de aprendizagem coletiva e partindo da premissa de que o passado foi paradisíaco para estabelecer uma clara diferença entre a “bondade” da natureza e a “maldade” introduzida pelos huma- nos. 12 Oscilando entre o terror (sucessivos exemplos de efeitos nocivos dos pesticidas, com histórias por vezes demasiado particulares e algumas conclusões talvez precipitadas) e a poesia (ou combinando os dois, por exemplo, na depois famosa narrativa inicial da aldeia edénica que se transforma em pesadelo – Cap. 1), com exemplos não só dos EUA, mas também de alguns outros países, chama contudo a atenção para alguns aspetos fundamentais, como a rele- vância da “ conservação da variedade ” (Cap. 8), uma espécie de biodiversidade avant la lettre e, sobre- tudo, a importância das cadeias ecológicas (bioló- gicas, bioquímicas 13 , geoquímicas, etc.), “ the web of life ” – a teia da vida (Cap. 17), em que a interferência com o mais pequeno dos elementos tem impacto em toda a rede. Os alertas que faz são importantes e necessários, mas o discurso de que nos foi dado um paraíso e que nós, quais filhos ingratos, estragámos tudo não

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