CULTIVAR CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA N.28 | junho 2023 | E struturas agrárias
CULTIVAR Cadernos de Análise e Prospetiva
CULTIVAR Cadernos de análise e prospetiva® N.º 28 | junho de 2023 | Estruturas agrárias Propriedade: Gabinete de Planeamento, Politicas e Administração Geral (GPP) Praça do Comércio, 1149-010 Lisboa Telefone: + 351 213 234 600 e-mail: geral@gpp.pt | website: www.gpp.pt Equipa editorial: Coordenação: Ana Sofia Sampaio, Bruno Dimas, Eduardo Diniz Ana Filipe Morais, Ana Rita Moura, António Cerca Miguel, João Paulo Marques, Mafalda Gaspar, Manuel Loureiro, Pedro Castro Rego, Rui Trindade e-mail: cultivar@gpp.pt Colaboraram neste número: Gonçalo Santos Andrade, Isabel Escada Mendes, Joaquim Cabral Rolo, José Vasco Serrano, Júlia Seixas, Laura Fonseca, Rui Pereira Edições anteriores: https://www.gpp.pt/index.php/publicacoes-gpp/cultivar-cadernos-de-analise-e-prospetiva Edição: Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP) Execução gráfica e acabamento: Sersilito – Empresa Gráfica, Lda. Tiragem: 1 000 exemplares | Edição gratuita ISSN: 2183-5624 Depósito Legal: 394697/15
CULTIVAR Cadernos de Análise e Prospetiva N.º 28 junho de 2023 Estruturas agrárias
Índice 7/9 | EDITORIAL SECÇÃO I – GRANDES TENDÊNCIAS 13/21 | PERCEÇÕES E INTERPRETAÇÕES NA EVOLUÇÃO DAS ESTRUTURAS AGRÁRIAS NACIONAIS – OPORTUNIDADES E VULNERABILIDADES DA AGRICULTURA PORTUGUESA Eduardo Diniz e Bruno Dimas 23/32 | PLURALIDADE DOS AGENTES COM EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA NO CONTINENTE PORTUGUÊS Joaquim Cabral Rolo 33/35 | OS GRANDES DESAFIOS DA PRODUÇÃO: AUMENTAR A ÁREA DE REGADIO, CONCENTRAR A OFERTA E EQUILIBRAR SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL, SOCIAL E ECONÓMICA Gonçalo Santos Andrade 37/42 | SISTEMA ALIMENTAR E TRANSIÇÃO ENERGÉTICA – REFLEXÕES PARA O FUTURO Júlia Seixas SECÇÃO II – OBSERVATÓRIO 45/88 | OS NÚMEROS DO RECENSEAMENTO AGRÍCOLA 2019 Rui Trindade e Rui Pereira 89/102 | TIPOLOGIA TERRITORIAL DE BASE AGRÍCOLA – A ESTRUTURA DAS EXPLORAÇÕES AGRÍCOLAS DO RA 2019 Laura Fonseca, Rui Trindade e Rui Pereira
6 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 28 JUNHO 2023 – Estruturas agrárias 103/112 | MULHERES NA AGRICULTURA: 1989 A 2019 Isabel Escada Mendes SECÇÃO III – LEITURAS 115/119 | PERSPETIVAS AGRÍCOLAS DA OCDE/FAO PARA 2022‑2031 Breve síntese do relatório OECD-FAO Agricultural Outlook 2022-2031, junho de 2022, por Ana Rita Moura 121/123 | MODALIDADES DE UNIDADE AGRÍCOLA, FAMILIARES E OUTRAS, E CONTEXTOS TERRITORIAIS NO CONTINENTE PORTUGUÊS À BEIRA DOS ANOS 2020 Breve síntese do relatório com o mesmo nome, de Joaquim Cabral Rolo, fevereiro de 2021, por João Marques 125/128 | PERSPETIVA GLOBAL DA TERRA – PRIMEIRA EDIÇÃO Síntese de alguns pontos do Global Land Outlook – First Edition (GLO 1), da ONU – UNCCD, 2017, por José Vasco Serrano 129/130 | EXPECTATIVAS DE REDUÇÃO MUNDIAL DO NÚMERO DE EXPLORAÇÕES ATÉ 2100 Breve referência ao artigo “Likely decline in the number of farms globally by the middle of the century”, de Zia Mehrabi, 2023
7 A presente edição da Cultivar é dedicada ao tema Estruturas agrárias. Consideramos oportuno apresentar, analisar e retirar algumas conclusões a partir dos dados do mais recente Recenseamento Agrícola 2019 (RA2019), elaborado pelo INE e cujos resultados foram publicados em 20211, complementados com outra informação relevante. Foram produzidos alguns artigos de fundo por parte do GPP, um dos quais foi enviado, numa versão preliminar, a autores externos com um pedido de comentários destacando o que considerassem mais relevante na evolução estrutural da agricultura em Portugal. Esta edição tem assim, por força das circunstâncias e do próprio tema, uma componente de autoria do GPP mais significativa do que o habitual. Os vários artigos que publicamos têm alguma densidade de estatísticas e conteúdos, por vezes opinativos, o que convida os nossos leitores a retirar pistas e ilações para uma reflexão e um debate sobre a evolução revelada pelo mais recente RA2019, o confronto entre as perceções e o real, e ainda a definição das estratégias e instrumentos que atuam sobre o território e a agricultura portuguesa em particular. 1 Instituto Nacional de Estatística – Recenseamento Agrícola. Análise dos principais resultados: 2019. Lisboa: INE, 2021. Disponível na www: <url:https://www.ine.pt/xurl/pub/437178558>. ISBN 978-989-25-0562-6. Assim, além deste Editorial mais descritivo, como é habitual, publicamos também um texto complementar de reflexão que pretende estimular o referido debate, apresentando uma leitura da nossa equipa editorial sobre os dados e artigos que publicamos e a necessidade de atuar de forma seletiva no quadro das políticas públicas, nomeadamente na aplicação da Política Agrícola Comum em Portugal. Trata-se de uma análise que não está encerrada e pretende, mais uma vez, trazer novas questões a debate. Editorial EDUARDO DINIZ Diretor-geral do GPP Determinação do pH de um terreno. Quinta da Baleia, Oliveira do Hospital, 1954, Estação Agrária de Viseu. Acervo do GPP (autor não identificado)
8 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 28 JUNHO 2023 – Estruturas agrárias O foco desta análise está na viabilidade das estruturas agrárias em Portugal nas suas três vertentes de análise: económica (dimensão física e dimensão económica; inviabilidade e abandono; territorialização, caracterização dos tipos de agricultura); ambiental (uso do solo e dos vários recursos; extensificação vs. intensificação; questão climática); e social (questões etárias; emprego). Assim, na secção Grandes Tendências, depois do texto de reflexão referido, Joaquim Cabral Rolo, parte do pressuposto de que “não há campo sem (a)gentes, nem políticas rurais não alicerçadas no que são os agentes” e afirma a convicção de que “ter em conta a racionalidade económica dos que tomam as decisões na/sobre a exploração é condição essencial no delineamento ajustado de medidas de política”. Para isso, elabora uma análise a partir de apuramentos específicos de dados do INE, estabelecendo uma classificação das modalidades da agricultura nacional segundo uma grelha própria que inclui diversos parâmetros. Chega deste modo a algumas conclusões interessantes, que são analisadas com maior detalhe nesse texto inicial de reflexão. No breve artigo de Gonçalo Santos Andrade, da Portugal Fresh, defende-se o aumento e a modernização da área de regadio, bem como “a necessidade de os produtores estarem organizados e criarem uma verdadeira escala de oferta”. O autor afirma que só assim será possível aumentar a competitividade do setor das frutas, hortícolas e flores, tanto a nível do mercado interno como a nível internacional. Refere ainda o problema urgente da renovação geracional dos produtores singulares, sublinhando o facto de mais de metade destes terem idade igual ou superior a 65 anos (para uma idade média de 64 anos). Júlia Seixas, da Universidade NOVA de Lisboa, estabelece a ponte entre a evolução dos sistemas de produção em Portugal, revelada pelo RA 2019, e a necessidade de abordar questões urgentes de gestão dos recursos terra, água e energia. Sublinha a extrema complexidade do nexus energia-água-alimentos, “resultando do cruzamento entre tecnologias, recursos naturais disponíveis, hábitos culturais, valores e preferências individuais, disponibilidade económica, contexto macroeconómico, inovação e psicologia de comportamento, entre outros”, acrescentando que são necessárias abordagens inovadoras para enfrentar os desafios do futuro e apresentando algumas dessas novas maneiras de olhar para velhos problemas. A abrir a secção Observatório, o artigo de Rui Trindade e Rui Pereira, do GPP, faz uma análise sucinta e uma descrição dos principais indicadores do RA 2019 (relativos a número de explorações agrícolas, natureza jurídica, dimensão económica, Orientação Técnico-Económica, superfície ocupada, superfície florestal, superfície regada e irrigável, efetivo animal, mão-de-obra, Valor da Produção Padrão, ou Modo de Produção Biológico), destacando as mais importantes características da evolução estrutural recente da agricultura portuguesa sob estes aspetos. Foi uma versão preliminar deste documento que foi enviada aos nossos convidados nesta edição da Cultivar, para que, a partir dos números nele contidos, elaborassem as suas próprias análises, segundo a vertente que lhes parecesse mais profícua. O artigo de Laura Fonseca et al., também do GPP, atualiza um estudo anterior realizado no âmbito do Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT), altura em que foi criada uma Fotografia de Artur Pastor – Estudos biométricos para melhoramento do arroz, Posto Experimental do Vale do Tejo, Salvaterra de Magos, 1953. Acervo do GPP
Editorial 9 tipologia territorial de base agrícola a partir de indicadores estruturais do então RA 2009 e de outras fontes de informação. A atualização dessa tipologia baseia-se agora, nomeadamente, no RA 2019, através do apuramento de uma matriz de 35 indicadores organizados em três grupos: económicos; sociais e humanos; ambientais e de ocupação do território. Esses indicadores começam por ser individualmente mapeados no território nacional; em seguida, é criado um mapa agregado para cada um dos grupos temáticos identificados; finalmente, produz-se um mapa dos cinco territórios obtidos da conjugação dos temas que resume, de certa forma, toda essa informação estrutural. Apresenta-se, a concluir, uma breve descrição de cada um desses perfis territoriais resultantes. No artigo seguinte, Isabel Escada Mendes, do GPP, faz uma análise sobre a evolução do papel das mulheres na agricultura nos últimos 30 anos, também com base na informação dos recenseamentos agrícolas. Conclui que as mulheres continuam a desempenhar um papel muito importante na agricultura, embora muitas vezes não reconhecido, tendo até aumentado consideravelmente a percentagem de produtoras singulares e de dirigentes agrícolas femininas. Embora tenham vindo a ser tomadas medidas para promover a igualdade salarial, o trabalho feminino continua a ser menos valorizado, mesmo se a discrepância no setor agrícola é inferior à da economia em geral. As mulheres têm também investido na sua formação e qualificação, que revelam tendências muito positivas, apesar das condicionantes ainda existentes. Destaca-se igualmente o maior investimento feminino em projetos de alguma dimensão, por exemplo, no subsetor dos pequenos frutos. Na secção Leituras, são analisados: o relatório da OCDE/FAO sobre as Perspetivas agrícolas para a próxima década (2022-2031, de junho de 2022); um documento anterior de Joaquim Cabral Rolo sobre as modalidades das estruturas agrícolas nacionais (2021, anterior à publicação do RA 2019); certos elementos do relatório das Nações Unidas sobre o estado das terras a nível global (GLO 1, 2017), no âmbito da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD); e ainda um artigo recente sobre o provável declínio do número de explorações em todo o mundo até ao final do século XXI (2023).
GRANDES TENDÊNCIAS N.º 28 junho de 2023
CULTIVAR v.t. TRABALHAR A TERRA PARA TORNÁ-LA FÉRTIL.
13 Perceções e interpretações na evolução das estruturas agrárias nacionais – oportunidades e vulnerabilidades da agricultura portuguesa EDUARDO DINIZ E BRUNO DIMAS Diretor-geral e Subdiretor-geral do GPP Políticas públicas para a agricultura: um caminho persistente A nível científico e das políticas públicas internacionais, europeia e nacional, o papel da agricultura na sociedade tem tido um desenvolvimento assente nos últimos trinta anos no conceito de multifuncionalidade. A multifuncionalidade refere-se ao facto de a atividade agrícola, para além do seu papel de produção de alimentos e fibras, poder também ter várias outras funções, como a gestão dos recursos naturais, da paisagem, a conservação da biodiversidade e a contribuição para a viabilidade socioeconómica das zonas rurais. Este conceito estabelecido no advento da criação das estratégias para o desenvolvimento sustentável 1 A Reforma da PAC de 1992, proposta pelo então Comissário da Agricultura Ray MacSharry e adotada durante a Presidência portuguesa do Conselho, constituiu um ponto de viragem na política agrícola europeia, passando do apoio ao mercado ao apoio ao produtor: https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/cap-introduction/timeline-history/ esteve também relacionado com a necessidade de contribuir para a remodelação das políticas agrícolas protecionistas e o incentivo à internacionalização da economia mundial. Com algumas distinções, e por vezes com algumas ambiguidades, a agricultura multifuncional esteve na base das estratégias de organizações como a FAO e a OCDE e, a partir da década de 90 do século passado, a Política Agrícola Comum (PAC) da União Europeia adotou a multifuncionalidade como o eixo estruturante do Modelo Agrícola Europeu1. Desta forma, foi possível dar resposta às crescentes pressões externas e internas à União Europeia (UE) para reduzir o apoio aos preços dos produtos e, tendo-se reconhecido a importância da produção …a agricultura multifuncional esteve na base das estratégias de organizações como a FAO e a OCDE e, a partir da década de 90 do século passado, a Política Agrícola Comum (PAC) da União Europeia adotou a multifuncionalidade como o eixo estruturante do Modelo Agrícola Europeu.
14 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 28 JUNHO 2023 – Estruturas agrárias de bens públicos pela agricultura, foi igualmente possível responder aos anseios de viabilizar a atividade agrícola no território, respondendo também à necessidade de produção alimentar própria, a par da preservação dos recursos naturais, das características paisagísticas e da vitalidade das zonas rurais, objetivos que são valorizados positivamente pela sociedade europeia em geral. Também em Portugal, com a integração plena na PAC, houve um alinhamento claro com esta linha concretizado formalmente através da Lei de Bases do Desenvolvimento Agrário de 19952, que nos seus Princípios Gerais aponta em primeiro lugar o “Princípio da multifuncionalidade da agricultura, enquanto atividade económica com impacte importante ao nível social, ambiental e de ocupação do espaço rural”. Naturalmente que, nestes últimos trinta anos, este triângulo económico/social/ ambiental foi evoluindo nas políticas europeias, reforçando-se, consoante o contexto, cada um dos ângulos. Foram várias as reformas que incidiram sobre a PAC e que se caracterizaram por um desmantelamento do apoio aos preços e por uma integração progressiva destas preocupações. Numa fase inicial, pela componente do Desenvolvimento Rural (muito relevante para Portugal na modernização do seu aparelho produtivo) enquanto segundo pilar da PAC, posteriormente com o apoio direto ao rendimento e ao longo do tempo e, com maior incidência nas últimas reformas, com as questões ambientais e, ainda mais recentemente, com a vertente climática. 2 https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/lei/86-1995-546975 3 https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/european-green-deal_pt 4 “a) Promover um sector agrícola inteligente, competitivo, resiliente e diversificado, de modo a garantir a segurança alimentar a longo prazo; / b) Apoiar e reforçar a proteção do ambiente, incluindo a biodiversidade, e a ação climática e contribuir para o cumprimento dos objetivos da União em matéria de ambiente e de clima, nomeadamente os compromissos assumidos pela União no âmbito do Acordo de Paris; / c) Reforçar o tecido socioeconómico das zonas rurais” Regulamento (UE) 2021/2115: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32021R2115&from=EN Evolução das estruturas agrárias – intensificação e extensificação em simultâneo Na recente reforma da PAC e no desenho dos Planos Estratégicos, e ainda nos tempos que se avizinham de aprofundamento do seu alinhamento com o Pacto Ecológico Europeu3, ressaltam algumas questões sobre o equilíbrio das componentes economia- -alimentação/social-rural/ambiente-clima-saúde, que geram tensões internas e externas em que não se vislumbram, desde já, os contornos da sua resolução. Torna-se pertinente questionar se as estruturas agrárias, a governança das políticas públicas e seus recursos conseguem corresponder aos anseios da sociedade. Se componentes não relacionadas com a atividade produtiva se tornaram mais importantes do que a própria produção alimentar e de fibras. Estaremos na presença do avesso do conceito da multifuncionalidade? É neste quadro que, na recente reforma da PAC, os seus três grandes objetivos gerais4 foram corporizados em Portugal através da identificação de um conjunto de necessidades específicas e da elaboração de instrumentos de política em conformidade. A resiliência da agricultura nacional, visando a garantia do abastecimento alimentar, implica a necessidade de manter a superfície agroflorestal e aumentar a produção, em particular de bens críticos. A competitividade e o equilíbrio na cadeia alimentar são Torna-se pertinente questionar se as estruturas agrárias, a governança das políticas públicas e seus recursos conseguem corresponder aos anseios da sociedade. Se componentes não relacionadas com a atividade produtiva se tornaram mais importantes do que a própria produção alimentar e de fibras. Estaremos na presença do avesso do conceito da multifuncionalidade?
Perceções e interpretações na evolução das estruturas agrárias nacionais 15 determinantes, e os pagamentos diretos clássicos e as medidas de apoio ao investimento são os principais instrumentos para o atingir. Em simultâneo, a mitigação e a adaptação às alterações climáticas colocam a necessidade generalizada da transformação dos sistemas de produção agrícolas, o que implica uma transição para uma melhor gestão dos recursos água, ar e solo, bem como da biodiversidade. Os regimes ecológicos, as medidas agroambientais (MAA) e os apoios ao investimento são as vias para incentivar esta transformação. Finalmente, o papel da agricultura nos territórios rurais é importante, mas já não é suficiente para o desenvolvimento destes, dado o seu pequeno peso económico e a diminuição do emprego agrícola. Neste âmbito, importa analisar como podem as explorações agrícolas portuguesas dar as respostas necessárias. O acesso a um conjunto vasto de dados e indicadores estatísticos que várias fontes estatísticas nos proporcionam, nomeadamente as comparações entre os Recenseamentos da Agricultura (RA), permite atualizar ou renovar a perceção do que é a agricultura portuguesa e ter uma visão agregada da sua realidade, confrontando-a com interpretações pré-estabelecidas. Permite ainda refletir sobre as oportunidades e vulnerabilidades das estruturas agrárias nacionais na sua preparação para assegurar uma resposta eficaz aos desafios atuais. Estes desafios incluem as tensões geopolíticas e comerciais, as alterações climáticas, a digitalização e a evolução das dinâmicas sociais, e ainda as alterações que se vão verificando nos regimes alimentares. Destacam-se duas vulnerabilidades críticas que estão estreitamente relacionadas com a atividade agrícola – a vulnerabilidade alimentar e a vulnerabilidade climática. Esta constatação suscita algumas questões. Permitem as nossas estruturas agrárias: — dar resposta à redução da dependência exterior para assegurar o abastecimento alimentar? — assegurar um aumento de produtividade e simultaneamente reduzir a dependência de importações críticas como fertilizantes, alimentos para animais, cereais? — dar resposta a um aumento crescente de eventos climáticos adversos? — gerar a produção de bens públicos ambientais? — manter uma ocupação e gestão territorial abrangente? — resistir à pressão concorrencial (urbana, turismo, energia-ambiente) sobre o uso dos recursos solo e água? Estas questões podem, por sua vez, provocar uma reflexão sobre qual a dimensão crítica das unidades de produção quer do ponto de vista físico, quer do ponto de vista económico. Com efeito, existe uma aceitação generalizada que a agricultura, tanto na sua componente de produção agroalimentar, como nos serviços agroambientais que proporciona, é sustentável através de pequenas unidades, muitas vezes desligadas do mercado para a sua viabilização. É neste contexto que importa ler o retrato que o RA 2019 efetua da agricultura portuguesa, em que a exploração agrícola é a unidade de análise sobre o uso do solo onde são cultivadas culturas ou criado gado por agricultores, e que integra uma parte relevante de floresta. Em Portugal, no ano de 2019, foram recenseadas um pouco mais de 290 mil explorações agrícolas com uma grande diversidade estrutural do ponto de vista fundiário, no uso do solo, no acesso à água, ao trabalho e na sua natureza jurídica e estas são, no seu conjunto, as células da agricultura nacional. Destacam-se duas vulnerabilidades críticas que estão estreitamente relacionadas com a atividade agrícola – a vulnerabilidade alimentar e a vulnerabilidade climática.
16 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 28 JUNHO 2023 – Estruturas agrárias Embora a agricultura represente uma pequena parte do Valor Acrescentado Bruto da economia nacional5, as explorações agrícolas estão presentes ao longo de todo o território português, marcando as paisagens nacionais com uma interação substancial com os recursos naturais e a biodiversidade. A dimensão média das explorações agrícolas, embora verificando um crescimento constante, continua a ser relativamente pequena6. Tal como em muitos outros países, tem-se registado uma redução ao longo do tempo na quantidade de mão-de-obra empregada na agricultura, com particular impacto na mão-de-obra familiar. Em muitas explorações, a agricultura e a silvicultura coexistem e os agricultores são simultaneamente produtores florestais7. É de destacar uma constância da Superfície Agrícola Utilizada (SAU) ao longo das últimas décadas, embora com importantes alterações internas.8 No uso do solo, verifica-se um movimento de concentração e consolidação de sistemas de uso mais produtivo comummente relacionados com capacidade de acesso a irrigação, mas de uma forma geral verificou-se uma extensificação da atividade em que as pastagens ocupam a maioria da SAU9. Na forma jurídica de exploração, continua a verificar-se o domínio dos produtores singulares (em que o autoconsumo é cada vez menos significativo), embora com um acréscimo de sociedades em 5 Agricultura 1,2%; Complexo Agroalimentar 3,5% 6 13,7 ha em Portugal, 14,4 ha no Continente 7 130 621 explorações com floresta estreme (sem culturas sob coberto), representando 45% do total de explorações. 8 Em 2019, 5,12 milhões de ha de superfície total das explorações, 3,96 milhões de ha de SAU e 631 mil ha de superfície irrigável. Em 1999, 5,19 milhões de ha de superfície total das explorações, 3,86 milhões de ha de SAU e 792 mil ha de superfície irrigável. 9 52% em 2019, 21% em 1989 10 De 0,7% das explorações em 1989 para 5,0% em 2019. De 9,4% da SAU em 1989 para 36,7% da SAU em 2019. 11 Taxa de crescimento médio anual das exportações de 2000 a 2022 do complexo agroalimentar de 7,4% (5,6% na Economia). Em 2022, o Complexo Agroalimentar representa 11,7% das importações e 7,9% das exportações. 12 Ver Anexo ao artigo “Os números do Recenseamento Agrícola 2019”, na secção Observatório desta edição. 13 Representa aproximadamente 90% da área equipada com potencial irrigável que, por seu lado, é cerca de 7% do território nacional e 16% da SAU. número, mas particularmente na representatividade no uso da SAU10. Portugal permanece como um importador líquido de produtos agroalimentares, embora as exportações tenham vindo a crescer significativamente nos últimos anos, sendo o setor agroalimentar um dos principais setores portugueses no comércio internacional11. Constatamos assim que: — A superfície agrícola ocupa 43% do território nacional e mais de metade são pastagens permanentes, o que corresponde a uma tendência de extensificação.12 — Apenas 6% do território nacional (pouco mais de 14% da superfície agrícola) coincide com área irrigada13 com um contributo determinante para a produção alimentar e a criação de valor, o que corresponde a uma tendência de intensificação. — A ligação ao mercado é muito diferenciada por tipo de exploração. — Há uma redução da dependência do rendimento agrícola para o rendimento do agricultor e sua família numa parcela significativa de agricultores. — Na generalidade das zonas rurais, o solo é maioritariamente gerido por explorações agroflorestais, mas na população, no emprego e na produção, a agricultura tem um peso inferior a 10%. O rural não é sinónimo de agrícola. …as explorações agrícolas estão presentes ao longo de todo o território português, marcando as paisagens nacionais com uma interação substancial com os recursos naturais e a biodiversidade.
Perceções e interpretações na evolução das estruturas agrárias nacionais 17 Produção agrícola, gestão territorial e administração patrimonial Na análise do abastecimento alimentar e tendo presentes as preocupações com o equilíbrio das posições negociais na cadeia alimentar, é de salientar que, com raras exceções, as explorações agrícolas enquanto unidades económicas correspondem ao conceito de Pequenas e Médias Empresas (PME), que representam também quase 100% da produção e da SAU. Em particular, as microempresas são 99,5% das explorações, representando 91% do Valor de Produção Padrão (VPP)14 e 75% da SAU. São características distintas dos outros elos da cadeia e de outros setores da economia, sendo que na economia portuguesa, as PME geram apenas 43% do produto. O acesso universal das explorações a apoios desligados não parece, assim, criar situações de distorção da concorrência, dado não existirem unidades económicas agrícolas de grande dimensão, que tenham um poder negocial relevante. No entanto, há que estar atento ao tema, pois a verticalização empresarial na cadeia alimentar poderá ganhar alguma importância e mesmo que a componente agrícola tenha uma dimensão económica reduzida, pode pertencer a grandes empresas. Apesar desta homogeneidade quanto à dimensão económica quando observada no contexto das empresas nacionais, as quase trezentas mil explora14 VPP é o valor da produção para cada atividade, correspondente à situação média de uma dada região. O valor da produção é, por sua vez, o valor monetário da produção agrícola bruta ao preço à saída da exploração. É igual à soma do valor do(s) produtos(s) principal(ais) e do(s) produto(s) secundário(s). Regulamento de Execução (UE) 2015/220: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32015R0220&from=HU 15 A classificação analítica efetuada por Joaquim Rolo no seu artigo para esta edição permite outras leituras, dando pistas mais precisas sobre a capacidade de as políticas induzirem ações nas explorações agrícolas, embora seja menos fácil a transposição para a operacionalização de políticas. ções agrícolas recenseadas apresentam uma grande diversidade e darão contributos também muito diversificados na prossecução dos objetivos de política. As estratificações, que permitem quer uma maior facilidade de exposição e de análise quer uma possibilidade de operacionalização de instrumentos de política, correm, contudo, o risco de apresentarem abordagens simplistas. Por exemplo, as classificações de acordo com a dimensão física ou económica das explorações não permitem distinguir situações muito diferenciadas dentro de cada classe na relação com as políticas. A evolução que as explorações têm tido está a conduzir a uma separação cada vez mais clara entre tipologias de agricultura, ficando mais evidenciadas quer as explorações-empresas (mesmo que microempresas) quer as explorações que efetuam essencialmente uma gestão patrimonial15. Praticamente desapareceram as explorações com uma dependência relevante da agricultura em termos de rendimento e que produzem para autoconsumo. Recorrendo ainda a esta análise de Joaquim Rolo, a grande parte da produção agrícola, cerca de 2/3, é gerada em metade da SAU por 10% das explorações, que produzem essencialmente para o mercado e dependem da agricultura em termos de rendimento. Podemos ainda considerar que têm uma lógica de …as explorações agrícolas enquanto unidades económicas correspondem ao conceito de Pequenas e Médias Empresas (PME)… A evolução que as explorações têm tido está a conduzir a uma separação cada vez mais clara entre tipologias de agricultura, ficando mais evidenciadas quer as explorações-empresas (mesmo que microempresas) quer as explorações que efetuam essencialmente uma gestão patrimonial.
18 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 28 JUNHO 2023 – Estruturas agrárias atividade semelhante as explorações que produzem sobretudo para o mercado mas com uma dependência menos exclusiva do rendimento agrícola (15% das explorações, 15% do VPP, 20% da SAU). Ou seja, as explorações que produzem essencialmente para o mercado e dependem de modo relevante da agricultura representam 25% das explorações, 80% do VPP e 70% da SAU. Mesmo sendo sobretudo microempresas, são unidades económicas com lógica empresarial, tendo um valor médio de produção entre 150 a 250 mil €, com cerca de 4 UTA, uma produtividade média de 40 a 50 mil €/UTA, com dimensões físicas muito diversificadas. Parte destas explorações tornaram-se juridicamente sociedades (5% das explorações) e representam 50% do VPP e 37% da SAU. Há um conjunto muito significativo de explorações com lógicas intermédias patrimonial/comercial (dependem pouco do rendimento agrícola, mas produzem sobretudo para o mercado): 45% das explorações; 15% do VPP; 25% da SAU. Os dados indicam que têm alguma relevância na oferta alimentar e gerem uma parte importante da SAU. Têm uma capacidade adaptativa a diferentes contextos e políticas, o que pode ser um fator de resiliência. Tendo em conta a orientação predominante para o mercado, uma parte destas explorações tem uma lógica empresarial. Assim sendo, mais de 90% da produção agrícola provirá de explorações com um grau de profissionalização elevado, que gerem também cerca de 90% da SAU, cujas decisões de gestão dependem dos mercados agroalimentares e das políticas agrícolas e que serão cerca de metade das explorações agrícolas nacionais. Estas explorações são os principais agentes da política agrícola em termos de abastecimento alimentar, emprego rural sustentável, transição ecológica e gestão territorial. Cerca de 80% beneficia de apoios da PAC. Há ainda um conjunto grande de explorações agrícolas que não dependem do rendimento agrícola nem produzem para o mercado: 30% das explorações; 3% do VPP; 5% da SAU. São explorações com produções de 2 a 3 mil€ de rendimento anual, 0,7 UTA/expl; em média com 5 ha, dos quais 1/3 matos e floresta e 1/3 culturas permanentes. As políticas agrícolas terão efeitos limitados sobre este estrato, que corresponde a mais de 75 mil explorações, quer pela relação reduzida que têm com a agricultura quer pelo impacto marginal na produção e na ocupação do território. Cerca de metade tem apoios da PAC, mas o contexto socioeconómico e as políticas territoriais é que influenciarão a continuidade destas explorações. A mera presença no território pode ter efeitos positivos, mas tais benefícios devem ser aferidos a nível local. Esta evolução estrutural da economia portuguesa, e os novos objetivos relacionados com o ambiente e clima, levam a que as expetativas da sociedade em geral, e dos agricultores em particular, provoquem o questionamento sobre quais são as principais funções da agricultura e como é que os agricultores devem ou podem responder a essas funções ou objetivos. Com efeito, emergem como objetivos: (i) a segurança no abastecimento alimentar das populações; (ii) a manutenção da agricultura, ou o seu potencial, em todo o país; (iii) o aumento do valor acrescentado; e (iv) uma agricultura sustentável com menos emissões de gases com efeito de estufa (GEE). …mais de 90% da produção agrícola provirá de explorações com um grau de profissionalização elevado, que gerem também cerca de 90% da SAU, cujas decisões de gestão dependem dos mercados agroalimentares e das políticas agrícolas e que serão cerca de metade das explorações agrícolas nacionais. …são os principais agentes da política agrícola em termos de abastecimento alimentar, emprego rural sustentável, transição ecológica e gestão territorial. Cerca de 80% beneficia de apoios da PAC.
Perceções e interpretações na evolução das estruturas agrárias nacionais 19 A necessidade de aprofundamento das políticas agrícolas e de desenvolvimento rural têm merecido em Portugal, nas três últimas décadas, um consenso político, em grande parte sustentado pelo quadro institucional da União Europeia. A adaptação das estruturas agrárias nacionais, e da população que tem atividade na agricultura, foi muito intensa ao longo dos anos, fruto da evolução dos objetivos de política dirigidos ao setor e, principalmente, da evolução geral da economia portuguesa. Como objetivo final, podemos apontar que as políticas agrícolas devem promover práticas sustentáveis, garantindo a competitividade das empresas e assegurando que se fornecem alimentos nutritivos e a preços acessíveis à população. Os destinatários das políticas agrícolas, nomeadamente dos fundos públicos consignados e normas regulatórias, evoluem num quadro de complementaridade com o mercado. Com efeito, o mercado resolve em grande parte os objetivos relacionados com o abastecimento alimentar. Mas, para garantir a existência de um setor agrícola com vitalidade, é essencial assegurar uma gestão global do risco que colmate o desincentivo ao investimento agrícola, o que se torna ainda mais premente num processo de transição ecológica. Há ilações a tirar da caracterização sobre a afetação dos recursos financeiros e o formato dos instrumentos de política agrícola e rural, dado que os volumes financeiros reais são mais escassos, sobretudo após a vaga inflacionista dos últimos dois anos. A eficácia das políticas implica que esta seja dirigida a agentes que sejam afetados por elas e que tenham capacidade para dar resposta aos seus objetivos. Para além disso, a eficiência obriga a que exista uma relação adequada entre os seus custos e os seus efeitos. Há pois um conjunto de explorações (entre 40 a 60% do total) que não pode ser descurado de políticas agrícolas que visem a segurança do abastecimento alimentar, a transição ecológica e o contributo para territórios rurais sustentáveis. Há que encontrar critérios de seleção dos destinatários, da sua atividade e dos territórios onde se inserem adequados aos vários instrumentos, e que permitam uma relação proporcional entre o apoio e os resultados. O crescimento em termos físicos e/ou económicos das explorações é fundamental não só para gerar economias de escala e poder negocial, mas também para aumentar a eficácia e eficiência dos apoios. Por isso, as políticas não podem dificultar esse desenvolvimento. Por exemplo, o custo por hectare estimado de vários regimes ecológicos mostra que estes podem ser cinco vezes mais elevados em explorações de pequena dimensão relativamente às maiores. Os necessários efeitos sociais indiretos das políticas agrícolas só podem ser sustentáveis se os objetivos económicos e ambientais forem prosseguidos. A existência de apoios agrícolas com uma abrangência tendencialmente universal desvia recursos dos objetivos da política agrícola e é contraproducente a prazo. A política agrícola deve ser focada nas dezenas de milhares de explorações agrícolas determinantes em …os volumes financeiros reais são mais escassos, sobretudo após a vaga inflacionista dos últimos dois anos. Há que encontrar critérios de seleção dos destinatários, da sua atividade e dos territórios onde se inserem adequados aos vários instrumentos, e que permitam uma relação proporcional entre o apoio e os resultados. O crescimento em termos físicos e/ ou económicos das explorações é fundamental não só para gerar economias de escala e poder negocial, mas também para aumentar a eficácia e eficiência dos apoios.
20 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 28 JUNHO 2023 – Estruturas agrárias termos de abastecimento alimentar, emprego rural sustentável, transição ecológica e gestão territorial. Pode ainda ser articulada na justa medida, de modo a ser um complemento local de políticas socioterritoriais, para cujos objetivos a política agrícola não tem eficácia. É assim necessário equilibrar a regulação direta com os estímulos de mercado. Ou seja, deve-se procurar um mix de políticas que procurem conciliar a proteção ambiental, a proteção do consumidor e a produtividade alimentar. A aplicação dos instrumentos de política tem de ter em conta a diversidade estrutural e a capacidade de impor seletividade no acesso aos apoios públicos e na proteção dos recursos destinados à agricultura. E, por conseguinte, nem todas as explorações contribuem para os objetivos com a mesma eficiência e eficácia. Uma visão agregada da agricultura portuguesa como uma atividade uniforme ou, pelo menos, com alguma coerência interna no uso dos recursos terra, trabalho e capital não corresponde à realidade que se observa na evolução intercensitária. Com efeito, quer pelas características estruturais (dimensão fundiária e acesso à água), quer pelas estratégias de gestão individual (comercial vs. patrimonial) verifica-se a referida distinção crescente, ou mesmo dualidade, da agricultura nacional. Conclusão – seletividade e complementaridade As vulnerabilidades da agricultura nacional são mais vastas e não só centradas na PAC, mas também no posicionamento estratégico que o país, incluindo governo, setor e cidadãos em geral, deseja para a agricultura. A SAU nacional é reduzida, extensiva e pouco produtiva; os solos de qualidade e a área irrigada e irrigável são diminutos. Há necessidade de encarar uma dualidade crescente na nossa agricultura: uma vasta área de 80% com dificuldades de viabilização (o sequeiro), mas com um papel de gestão territorial e climática imprescindível ao desenvolvimento sustentável do nosso país e uma área com maior aptidão produtiva de cerca de 14% da SAU, 566 mil ha, ou seja 6% de todo o nosso território. Este número demonstra bem que o solo, principal responsável pela produção alimentar em Portugal, deve ser protegido. A concorrência por este recurso é enorme: urbanização (áreas férteis são tradicionalmente próximas dos aglomerados urbanos), a pressão energia-solo (caso dos painéis solares), a floresta, o turismo… Por outro lado, é cada vez mais importante, no seio do universo das explorações agrícolas, focar as políticas naquelas que mais contribuem para os objetivos de segurança alimentar e de gestão territorial. É uma parcela reduzida de explorações agrícolas que gera um maior valor económico e de produção agroalimentar ou um maior contributo para a gestão do território e a sua resiliência ecológica. Isto não quer dizer que todas as explorações agrícolas não tenham o seu papel, mas o que se verifica é que um elevado número de explorações cumprem um papel limitado nestes objetivos e, mesmo do ponto de vista do rendimento dos agregados, o contributo da agricultura, ou mesmo o autoconsumo, tornou-se secundário comparativamente há umas décadas. Pretendemos, assim, evidenciar a importância de uma maior focagem na atribuição de recursos (financeiros e naturais) escassos a explorações que melhor respondam aos objetivos prioritários para A aplicação dos instrumentos de política tem de ter em conta a diversidade estrutural e a capacidade de impor seletividade no acesso aos apoios públicos e na proteção dos recursos destinados à agricultura. As vulnerabilidades da agricultura nacional são mais vastas e não só centradas na PAC, mas também no posicionamento estratégico que o país, incluindo governo, setor e cidadãos em geral, deseja para a agricultura.
Perceções e interpretações na evolução das estruturas agrárias nacionais 21 a agricultura (produção alimentar e ecologia) e, em simultâneo, a necessidade de uma maior complementaridade com outras políticas tendo em conta a expansão de novas áreas com insuficiências de investimento (infraestruturas- -conectividade e regadio; desenvolvimento local; floresta). Um debate que teve alguma relevância no espaço da UE referiu-se ao conceito de agricultor ativo. Em Portugal, a necessidade de uma abrangência na presença da agricultura no território, mesmo naqueles com maiores constrangimentos naturais, levou à adoção de uma abordagem flexível, mas progressivamente atenta-se na preocupação com a gestão ativa. Este debate não se faz, naturalmente, sem olhar para uma maior territorialização de alguns instrumentos de política e, a prazo, tem que ser iniciado com base nos dados que nos permitem entender as evoluções da nossa agricultura. A cada reforma da PAC, ou quando são publicados dados estatísticos muito completos do diagnóstico da nossa agricultura, como foi o caso do RA2019, reinicia-se um debate sobre o futuro da agricultura em Portugal. É neste quadro, que se quer informado, que a presente reflexão pretende incentivar um debate alargado e atempado para melhorar, a prazo e com a previsibilidade necessária, a atuação sobre uma atividade produtiva que tem cada vez mais interesses diversificados e permitir assim um contrato de confiança claro entre a sociedade portuguesa e os agricultores. Pretendemos, assim, evidenciar a importância de uma maior focagem na atribuição de recursos (financeiros e naturais) escassos a explorações que melhor respondam aos objetivos prioritários para a agricultura (produção alimentar e ecologia) e, em simultâneo, a necessidade de uma maior complementaridade com outras políticas…
23 Pluralidade dos agentes com exploração agrícola no Continente português JOAQUIM CABRAL ROLO* Investigador Coordenador aposentado do INIAV, I.P. Enquadramento Estrutura agrária: o conjunto das relações no e do campo1 com a economia/sociedade; o campo como o espaço agrícola e florestal e os agentes económicos que o mobilizam, no seio do solo rústico. A observação da estrutura agrária que se empreende é parcial: limita-se ao tempo atual – arredando-se as mudanças em tempo longo ou mais recente2; omite a heterogeneidade estrutural, vincada, às escalas regional, sub-regional e local; foca-se numa entidade, a exploração agrícola com os atributos concertados pelas estatísticas oficiais; acolhe parcas vertentes da estrutura interna exploração – não se mencionando, por ex., as formas de acesso à terra, o parcelamento e, mormente, a tecnologia/equipamentos. Contextualiza-se o universo de explorações3: face à população residente no país, o número significa * Pelos comentários durante a elaboração do escrito, grato a F. O. Baptista, F. Cordovil e J. Veiga. 1 Cf. https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa [“estrutura” e “agrária”]. 2 Vd. Rolo e Cordovil, 2021. Enquadramento Histórico e Agricultura – Um século. Vol. I de Cordovil, F., Rolo, J. C. e Rocha, J. R., Materiais para a História do Ministério da Agricultura 1918 – 2017, in https://www.iniav.pt/divulgacao/publicacoes-bd?filter_37=outras3 Rolo, 2020. A valia económica dos mosaicos agroarborícolas e florestais portugueses – um ensaio de avaliação Cultivar n.º 21; INE, RA2019 e Censos 2021. A população associada a explorações: a população agrícola familiar (INE) + UTA não familiar. 4 Cf. Laurent, C. et al., 2003. “Multifonctionnalité de l’agriculture et modèles de l’exploitation agricole” in Économie Rurale, n. º 273-274. Paris: SFER, pp. 135-143. cerca de 3% e a população associada 7%; e face ao tamanho do solo rústico, a superfície total situa-se em redor de 60%, quota que desce para o limiar de 50% na avaliação das extensões de “agricultura”, “floresta”, “matos e pastagens” (em exploração agrícola). Sob este último aspeto, acentua-se: são outros, que não os responsáveis por exploração agrícola, os agentes do solo rústico. Exploração agrícola: uma unidade microeconómica, complexa, onde imperam diferenciadas perceções de situação e de objetivos dos agentes que a materializam4. Eleito o trabalho como um dos critérios nucleares de classificação das explorações – seguindo, de resto, o fixado pelo INE – emerge a componente trabalho familiar (vs. assalariado) e, assim, fica em primeiro plano a conexão exploração-família; conexão pelo
24 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 28 JUNHO 2023 – Estruturas agrárias trabalho que não é dissociável da dimensão rendimento familiar. Formaliza-se a categorização das unidades agrícolas/agentes, a cuja resultante se atribui o nome de modalidades de agricultura, em conformidade com a diferenciada natureza dos agentes (estatuto jurídico e trabalho) e inserção/articulação no sistema económico (as vias do rendimento familiar: os mercados, agrícola e ou outros, a exploração como ativo/património). Mostra-se a importância económica-territorial das modalidades, os recursos que encerram (regadio, floresta …) e traços estruturais dos sistemas de produção. Um intento: o conhecimento – pela tipificação da diversidade de lógicas económicas – dos agentes que tomam “as decisões de fundo” (INE) sobre a atividade/funcionamento da exploração. Modalidades de agricultura Identificação e importância As unidades classificam-se segundo os parâmetros: (a) Natureza jurídica *Trabalho: Produtor individual 5 De fora as figuras jurídicas baldio e outras. 6 O conhecimento empírico mostra que assim não é. Um segmento, dependendo do volume da prestação familiar, poderá ser categorizado como sociedade “familiar” ou “semifamiliar”. 7 Cf.: Baptista, F. O., 2001. Agriculturas e territórios. Celta ed., pp. 63-71 e 83-96; Rolo, J. C. e Cordovil, F., 2018. Territórios, rural e agriculturas – Portugal nos anos 2000. https://www.iniav.pt/images/publicacoes/livros-manuais/silva-lusitana/5, pp. 66-93; Ruiz-Maya, L. e Regidor, J. G., 2019. Evolución de la Agricultura Española 1982-2009 ¿Una Reforma Agraria Silenciosa? Ed. MAPA; Rolo, J. C., 2021. Modalidades. https://www. iniav.pt/images/publicacoes/2021/joaquim-rolo/Rural_modalidades_agricultura_Joaquim-Rolo_3-3-2021.pdf; Cordovil, F., 2021. Agricultura e Política Agrícola, pp. 11-14. (familiar, semifamiliar, empresário), Sociedades, Baldios, Outras * (b) Exploração agrícola como origem do rendimento do produtor * (c) Autoconsumo como destino da produção agrícola (vd. Anexo A1). Do universo exploração agrícola, retém-se os produtores societário e individual5 e, neste, os com distinto nível de labor familiar. Sobre o trabalho, atenta-se à lógica de medição do resultado económico envolvendo a ponderação do encargo salarial: da menor compressão, porque inexistente ou de pequeno volume, no produtor familiar (+ de 75% de UTA familiar), à maior no produtor empresário; e também na sociedade. Para esta, contudo, a convenção estatística – todo o trabalho é de mão-de-obra não familiar6 – aparta a perceção dos laços família-exploração. Nota-se a associação do parâmetro estatuto dos produtores (a) com os dois outros (b) e (c): a importância da exploração aumenta do familiar, para o semifamiliar e empresário e, na mesma sequência (a que se junta a sociedade), diminui a quota de autoconsumo. A interseção das dimensões “origem do rendimento” e “destino da produção” (eleita a grandeza do autoconsumo oponente à da venda/mercado) demarca os arquétipos7 do Quadro 2. Quadro 1 − Proventos da exploração no Rendimento das famílias e Autoconsumo como destino da produção Expl./Rend. Fam. (%) Total Produtor individual Sociedade Total Familiar Semifamiliar Empresário 39 31 45 51 Autoconsumo (%) 26 31 36 22 17 6 Fonte: INE, RA2019, ap. esp. = apuramento específico …a importância da exploração aumenta do familiar, para o semifamiliar e empresário e, na mesma sequência (a que se junta a sociedade), diminui a quota de autoconsumo.
Pluralidade dos agentes com exploração agrícola no Continente português 25 (i) setorial agrícola – comercial: os proventos da exploração são centrais no rendimento familiar – é o qualificativo setorial agrícola –, e são obtidos primacialmente no mercado de bens agrícolas (produtos vegetais e animais), (ii) comercial – agrícola + património: prevalece o mercado como destino da produção (+ de 75%), mas o contributo da exploração no rendimento situa-se em estado intermédio (são os réditos anuais e os expetáveis, a prazo, do ativo/património), (iii) património – comercial: o rendimento anual da exploração complementa proventos familiares de outras origens, sendo criado sobretudo por transações mercantis (o epíteto “comercial”); uma lógica de segurança patrimonial com o rendimento esperável a prazo, (iv) património – não comercial (territorial): são sobretudo outras as funções da exploração que não a produção de bens agrícolas transacionáveis. Da vista global da importância das modalidades salienta-se: Uma diminuta quota de explorações (10,5%), fruindo um pouco menos de 50% da superfície total (ST), responde por 65% da economia de bens agrícolas; é o segmento setorial agrícola – comercial. Por sua vez, a modalidade património Quadro 2 – Arquétipos resultantes da interseção das dimensões “origem do rendimento” e “destino da produção” Modalidades Expl. no Rendimento Familiar * Autoconsumo (Un.: %) Importância (%) Provento da expl./ Rend. Familiar (prod. indiv.) Autoconsumo/ Produção (prod. indiv. + socied.) Global N.º expl. UTA VPP ST SAU Setorial agrícola - comercial Sociedades < 25 32,7 4,9 21,3 51,1 33,9 36,8 Prod. Indiv.> 75 + Socied. 44,5 10,5 31,2 65,3 47,4 52,0 Comercial - agrícola+património > 25 a <= 75 16,5 15,1 16,1 15,2 18,6 20,2 Património - comercial < 25 13,6 23,5 16,0 9,5 11,5 11,1 Património - não comercial Sociedades > 75 0,3 0,2 0,2 0,3 0,5 0,4 > 75 0,1 0,2 0,2 0,1 0,1 0,1 25 a <= 75 0,9 1,7 1,7 0,3 0,7 0,5 < 25 11,0 29,1 17,7 3,2 6,4 4,5 Sociedades > 25 a <= 75 0,4 0,2 0,3 0,4 0,6 0,6 > 75 0,7 0,8 1,1 0,5 0,6 0,6 < 25 6,2 14,0 10,2 2,6 3,9 3,2 total 19,7 46,2 31,4 7,5 12,7 9,9 Intermédio de Rend. e Autocons. > 25 a <= 75 (≈30) > 25 a <= 75 ( ≈40) 2,7 4,3 4,6 1,5 2,2 2,0 UTA – Unidade de Trabalho Ano; VPP – Valor da Produção Padrão; ST – Superfície Total; SAU – Superfície Agrícola Utilizada. Fonte: INE, RA2019 ap. esp. Uma diminuta quota de explorações (10,5%), fruindo um pouco menos de 50% da superfície total (ST), responde por 65% da economia de bens agrícolas…
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