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CULTIVAR CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA N.30 | abril 2024 | Melhoramento e técnicas genómicas

1 CULTIVAR Cadernos de Análise e Prospetiva

CULTIVAR Cadernos de análise e prospetiva® N.º 30 | Melhoramento e técnicas genómicas | abril de 2024 Propriedade: Gabinete de Planeamento, Politicas e Administração Geral (GPP) Praça do Comércio, 1149-010 Lisboa Telefone: + 351 213 234 600 e-mail: geral@gpp.pt | website: www.gpp.pt Equipa editorial: Coordenação: Ana Sofia Sampaio, Bruno Dimas, Eduardo Diniz Ana Filipe Morais, Ana Rita Moura, António Cerca Miguel, João Paulo Marques, Mafalda Gaspar, Manuel Loureiro, Pedro Castro Rego, Rui Trindade e-mail: cultivar@gpp.pt Colaboraram neste número: Ana Almeida, Ana Maria Barata, Ana Sofia Bagulho, Ana Teresa Silva, Ana Usié, António Manuel Cordeiro, Armindo Costa, Benvindo Maçãs, Carina Barcelos, Carla Inês, Carlos Gaspar, Carlota Vaz Patto, Carolina Bruno de Sousa, Carolina Carvalho, Catarina Ginja, Cátia Nunes, Claire Robinson, Conceição Gomes, Cristina Santos, Cristina Vasques, Fernanda Simões, Filipe Costa e Silva, Filomena Rocha, Graça Pereira, Isabel Carrasquinho, Isabel Duarte, Isabel Silva, João Pacheco, João Paulo Carneiro, Jorge Canhoto, José Alexandre Araújo, José Manuel Rodrigues, José Pragana, Lanka Horstink, Liliana Marum, Luís Leal, Madalena Vaz, Manuela Meneses, Margarida Mendes Silva, Maria Carlota Vaz Patto, Maria João Madureira, Michael Antoniou, Nuno Pinheiro, Nuno Simões, Paula Carvalho, Octávio Serra, Pedro Fevereiro, Pedro Pereira Dias, Pedro Teixeira, Susana Carneiro, Rita Costa, Rita Lourenço Costa, Teresa Carita, Teresa Carvalho, Violeta Lopes Edições anteriores: https://www.gpp.pt/index.php/publicacoes-gpp/cultivar-cadernos-de-analise-e-prospetiva Edição: Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP) Execução gráfica e acabamento: Sersilito – Empresa Gráfica, Lda. Tiragem: 1 000 exemplares ISSN: 2183-5624 Depósito Legal: 394697/15

CULTIVAR Cadernos de Análise e Prospetiva N.º 30 abril de 2024 Melhoramento e técnicas genómicas

Índice 7/10 | EDITORIAL SECÇÃO I – GRANDES TENDÊNCIAS 13/24 | A IMPORTÂNCIA DA (BIO)TECNOLOGIA PARA A SUSTENTABILIDADE DOS SISTEMAS ALIMENTARES AS NOVAS TÉCNICAS GENÓMICAS NO QUADRO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS EUROPEIAS E INTERNACIONAIS Eduardo Diniz, Cristina Vasques e Paula Carvalho 25/30 | AS NOVAS TÉCNICAS GENÓMICAS – INOVAÇÃO AO SERVIÇO DA AGRICULTURA E DO PLANETA João Pacheco 31/37 | O MELHORAMENTO VEGETAL E AS TECNOLOGIAS DE BASE MOLECULAR, EM PARTICULAR A EDIÇÃO GENÓMICA Pedro Fevereiro 39/52 | NOVAS TÉCNICAS GENÓMICAS: ALEGAÇÕES DUVIDOSAS EM MATÉRIA DE PRODUTIVIDADE, SUSTENTABILIDADE E SEGURANÇA NEW GENOMIC TECHNIQUES: DUBIOUS CLAIMS ON PRODUCTIVITY, SUSTAINABILITY, AND SAFETY Michael Antoniou e Claire Robinson 53/59 | VELHOS PROBLEMAS, NOVAS SOLUÇÕES: O POTENCIAL DAS NOVAS TÉCNICAS GENÓMICAS PARA A AGRICULTURA Jorge Canhoto SECÇÃO II – OBSERVATÓRIO 63/70 | TÉCNICAS GENÓMICAS: PRÓS E CONTRAS ANSEME e Plataforma Transgénicos Fora 71/77 | CONTRIBUINDO PARA O MELHORAMENTO VEGETAL DE NOVA GERAÇÃO Maria Carlota Vaz Patto

6 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 30 ABRIL 2024 – Melhoramento e técnicas genómicas 79/92 | BIODIVERSIDADE DOS ANIMAIS DOMÉSTICOS DA PENÍNSULA IBÉRICA: UMA PERSPETIVA GENÓMICA BIODIVERSITY OF IBERIAN FARM ANIMAL GENETIC RESOURCES: A GENOMICS PERSPECTIVE Catarina Ginja e Carolina Bruno de Sousa 93/105 | O MELHORAMENTO GENÉTICO FLORESTAL Manuel Loureiro (coord.), com contributos de Rita Lourenço Costa, José Alexandre Araújo, Susana Carneiro, Pedro Teixeira, Margarida Mendes Silva, Isabel Carrasquinho, Filipe Costa e Silva, Ana Usié, Liliana Marum, Luís Leal, Cristina Santos, Ana Almeida e José Manuel Rodrigues 107/112 | MELHORAMENTO GENÉTICO DE PLANTAS NO INIAV-ELVAS: OBTENÇÃO DE VARIEDADES Benvindo Maçãs, Rita Costa, Teresa Carita, Graça Pereira, António Manuel Cordeiro, Ana Sofia Bagulho, Nuno Simões, João Paulo Carneiro, Carla Inês, Isabel Duarte, Fernanda Simões, Teresa Carvalho, Nuno Pinheiro, Conceição Gomes, Armindo Costa, Carina Barcelos, Manuela Meneses, Cátia Nunes e José Pragana 113/122 | A CONTRIBUIÇÃO DO BPGV PARA O DESENHO CONTEMPORÂNEO DA AGRICULTURA E ALIMENTAÇÃO Ana Maria Barata, Carlos Gaspar, Filomena Rocha, Isabel Silva, Madalena Vaz, Octávio Serra e Violeta Lopes SECÇÃO III – LEITURAS 125/127 | AGROBIOTECH – ESTUDO DE APLICAÇÃO DA BIOTECNOLOGIA NA AGRICULTURA, ALIMENTAÇÃO E FLORESTA EM PORTUGAL Breve síntese do estudo da CAP e P-Bio com o mesmo nome, 2023, por João Marques 128/133 | NOVAS TÉCNICAS GENÓMICAS – REVISÃO DO ESTADO DE ARTE Análise do relatório técnico New Genomic Techniques – State-of-art review, do JRC, 2021, por Ana Rita Moura e Carolina Carvalho 134/135 | CAPACIDADE DO SETOR DO MELHORAMENTO VEGETAL PARA ENFRENTAR OS DESAFIOS DO ABASTECIMENTO ALIMENTAR Breve síntese do relatório com o mesmo nome da associação espanhola Anove e do Institut Cerdà, 2023, por Manuel Loureiro 136/139 | SUSTENTABILIDADE NO MELHORAMENTO EM PRODUÇÃO BIOLÓGICA – MELHORAR TODO O SISTEMA OU AJUSTAR ALGUNS GENES? Breve síntese do relatório com o mesmo nome da IFOAM, 2023, por Ana Filipe Morais

7 Como garantir simultaneamente o abastecimento alimentar da população mundial e os objetivos para a transição climática? Em grande medida, a resposta está no aumento da produtividade1, assente no desenvolvimento e na disseminação de inovações tecnológicas que possam gerar benefícios para os agentes do setor agroalimentar e toda a população em geral, procurando um equilíbrio económico, social e ambiental. É neste contexto que na Cultivar N.º 30 propomos o tema Melhoramento e técnicas genómicas. Com efeito, a história da agricultura é uma história de eficiência e introdução de tecnologias na gestão dos recursos naturais, solo, água e biodiversidade. Os desafios foram sendo diversos ao longo dos séculos, mas no essencial é permanentemente renovado o objetivo de alimentar em quantidade e qualidade todas as populações, preservando os recursos naturais. O melhoramento vegetal e animal está na base deste desenvolvimento da agricultura, tendo os seus 1 Segundo a OCDE, a resposta para atingir simultaneamente as metas da fome zero e da redução de emissões implica que a produtividade agrícola média global teria de aumentar 28%, nesta década, o que corresponderia a um aumento da produtividade mais do dobro do que o da década anterior. (OCDE/FAO (2022), OECD-FAO Agricultural Outlook, OECD Agriculture statistics (database), https://doi.org/10.1787/f1b0b29c-en métodos evoluído da tradicional seleção de espécies e variedades de plantas e animais para tecnologias genéticas sofisticadas. Convém realçar que a biotecnologia é no essencial uma ferramenta, a par de outras tecnologias que a agricultura foi incorporando ao longo dos anos, em particular com a generalização do modelo químico- -mecânico. Assim, o melhoramento e as técnicas genómicas devem ser avaliados pelo uso que deles se retira e pelos impactos positivos ou negativos que lhes possam estar associados. A resistência à adoção de novas tecnologias (movimentos luddistas) é recorrente e baseada em motivações económicas, de justiça social, éticas ou emocionais, às quais tem de se dar atenção para entender quais os limites das próprias tecnologias, bem como a avaliação dos seus impactos. O presente número da Cultivar procura promover o acesso ao conhecimento técnico e à opinião informada sobre este tema, para estimular o debate, confrontando interesses em presença, e assim contribuir Editorial EDUARDO DINIZ Diretor-geral do GPP

8 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 30 ABRIL 2024 – Melhoramento e técnicas genómicas para a definição de políticas públicas ajustadas para o uso e desenvolvimento das melhores práticas disponíveis na área do melhoramento e das técnicas genómicas. Convém recordar que a introdução das Novas Técnicas Genómicas (NTG) é uma componente do Pacto Ecológico Europeu, enquanto resposta às ambições climáticas definidas pela União Europeia. Com efeito, a Estratégia do Prado ao Prato, um dos pilares do Pacto, inclui iniciativa legislativa para a regulação desta tecnologia, cujo debate está em curso nas instituições europeias, a nível quer político quer técnico. Interpretamos que, no quadro das ambições climáticas europeias, o aumento da produtividade agrícola é essencial e, para tal, sem o recurso às Novas Técnicas Genómicas será difícil cumprir as próprias metas do Pacto Ecológico Europeu. O artigo de abertura desta edição procura equacionar os diversos aspetos do debate sobre estas matérias, fazendo um enquadramento histórico do melhoramento no setor agrícola e tentando não só responder à pergunta que formulámos no início deste Editorial, mas também esclarecer qual o contributo da União Europeia para este desafio de um sistema alimentar sustentável. João Pacheco, da Farm Europe, começa por estabelecer a definição e o potencial das NTG. Faz em seguida o enquadramento legal destas novas técnicas na União Europeia e esclarece algumas das razões que levaram à resistência da opinião pública em relação às técnicas genéticas, nomeadamente as consequências da possibilidade de “utilização de genes exteriores à espécie” em causa. Fala das possibilidades que as NTG abrem na proteção da saúde, do ambiente e do clima, em resposta a políticas já aprovadas pela União, ao mesmo tempo que poderão permitir a manutenção da competitividade de diversos setores em relação a parceiros de outros blocos mundiais onde certas exigências restritivas poderão ser menores. Não deixa, contudo, de referir os avisos da Comissão em termos de precaução e rotulagem, bem como certas restrições adicionais impostas pelo Parlamento Europeu, nomeadamente no que se refere a patentes. O artigo de Pedro Fevereiro, do Laboratório Colaborativo InnovPlantProtect, explica de que modo a história da humanidade está, desde o Neolítico, ligada à história da domesticação de plantas (e animais) e como esse processo conheceu desenvolvimentos imparáveis em tempos recentes. Esclarece que “a ideia de que as variedades cultivadas são plantas ‘naturais’, no sentido de que existem com as suas características atuais na natureza é completamente errada”, debruçando-se em seguida sobre os diversos mecanismos utilizados pelos seres humanos para obter variedades mais vantajosas, em especial as tecnologias genéticas descobertas desde meados do século XX. Nos desenvolvimentos atuais, destaca as técnicas que permitiram “saber qual a característica que é controlada por uma determinada sequência genómica”, bem como as possibilidades abertas pela ferramenta CRISPR-Cas9, que permite grande precisão, rapidez e simplicidade de atuação, ao mesmo tempo que é uma tecnologia relativamente Cartaz, Roberto Araújo, Ministério da Economia – Direção Geral dos Serviços Agrícolas, 1955 (acervo do GPP)

Editorial 9 barata. Conclui, afirmando que “temos o dever ético de utilizar as ferramentas modernas e cientificamente comprovadas para suprir as necessidades da humanidade.” Michael Antoniou e Claire Robinson, do King’s College London e da GMWatch, respetivamente, afirmam que as culturas geneticamente modificadas do passado não cumpriram as suas promessas de aumento de produtividade e sustentabilidade e que as NTG também não o farão, apesar das alegações em contrário. Referem que, por um lado, não são forçosamente necessários aumentos de produtividade para alimentar uma população ainda crescente – mais importante seria, por exemplo, combater o desperdício alimentar – e que, por outro lado, grande parte das características que se pretende obter são omnigénicas, ou seja, dependem de mais do que um gene. Afirmam também: “a genética é apenas parte da solução. Não basta concentrarmo-nos em características isoladas – são os sistemas agrícolas que dão sustentabilidade e resiliência.” E alertam para consequências imprevistas para a saúde e o ambiente, ou mesmo a produtividade, dado que “todos os genes funcionam integrados numa rede ou ecossistema (…) a alteração de apenas um gene pode ter impactos importantes na bioquímica de um organismo”. Jorge Canhoto, da Universidade de Coimbra, “resume a longa jornada do melhoramento de plantas, elucidando os métodos empregados desde a domesticação até às modernas técnicas de edição de genes.” Ao longo do artigo, esclarecem-se as diferentes fases deste percurso, do melhoramento convencional, passando pela descoberta científica das leis de Mendel e da evolução, às técnicas descobertas nos séculos XX e XXI de recombinação e edição genéticas. O autor recorda que “embora o melhoramento clássico de plantas não envolva a manipulação direta dos genomas das plantas a nível molecular, ele resulta em mudanças genéticas nas populações de plantas ao longo do tempo.” O objetivo é sempre o da obtenção de “variedades de culturas com melhores características agronómicas, resiliência e produtividade”, para garantir o abastecimento alimentar de uma população crescente e “enfrentar desafios agrícolas prementes.” A abrir a secção Observatório, apresentamos duas visões de duas associações com características bem diferentes: a ANSEME, Associação Nacional dos Produtores e Comerciantes de Sementes, e a Plataforma Transgénicos Fora. Como fizemos já no passado, colocámos três perguntas para as quais pedimos respostas relativamente sucintas. As perspetivas são diversas e deixam matéria para reflexão: se, por um lado, estas novas tecnologias poderão permitir aumentos de produtividade e competitividade e a resolução de vários problemas que afetam atualmente não só o setor agrícola, mas também o planeta, é preciso, por outro lado, não deixar de ter em conta o importante princípio da precaução, muitas vezes descurado. Maria Carlota Vaz Patto, do ITQB-NOVA, traça um breve panorama dos desenvolvimentos mais recentes do melhoramento vegetal, centrando-se depois no trabalho realizado no seu laboratório: “O objetivo do PlantX é contribuir para um melhoramento mais rápido e eficiente de cereais e leguminosas, algumas das quais são NUC [culturas negligenciadas e subutilizadas] com importância social ou económica para o país.” Para isso, fazem colheitas de germoplasma de variedades tradicionais ou recorrem a bancos existentes, em busca das características pretendidas: “o aumento da produção, (…) a resistência a doenças e intempéries (como a seca), a qualidade nutricional, organolética e de processamento.” Para obter tais características, recorrem a diversas abordagens inovadoras, que passam naturalmente também por ensaios de campo, e por uma “colaboração multidisciplinar e participativa, envolvendo cidadãos, agricultores e diversos grupos de investigação nacionais”. Catarina Ginja e Carolina Sousa, do CIISA, falam dos meios e abordagens utilizados na gestão e conservação dos recursos genéticos das raças autóctones portuguesas e da grande biodiversidade que lhes está associada, e de como essas práticas são facilitadas por novas tecnologias recentemente desenvolvidas. Referem igualmente a história destas raças que, graças a essas novas técnicas, é agora possível traçar mais claramente, indicando ainda a respetiva distribuição geográfica e abundância relativa no nosso país. Relembram a necessidade de as instituições

10 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 30 ABRIL 2024 – Melhoramento e técnicas genómicas estarem atentas à conservação destes importantes recursos e falam de projetos concretos, como o OPTIBOV, que permite simultaneamente recolher conhecimento tradicional e gerar novo conhecimento sobre raças locais e não só, numa faixa considerável de território que, no caso deste projeto, vai desde África até ao Norte da Europa. Manuel Loureiro, do GPP, coordena um artigo elaborado a partir dos contributos de diversas entidades, públicas e privadas, e investigadores que trabalham no melhoramento florestal em Portugal nas diversas fileiras relevantes: castanheiro (Rita Lourenço Costa, do INIAV); eucalipto (José Alexandre Araújo, do Raiz); pinheiro (Susana Carneiro, Pedro Teixeira e Margarida Mendes Silva, do Centro PINUS, e Isabel Carrasquinho, do INIAV); sobreiro (Filipe Costa e Silva, do ISA, e Ana Usié e Liliana Marum, do CEBAL); e ainda o projeto Melhoramento genético e materiais florestais de reprodução (Luís Leal, da Altri) e o PROGEN – Programa Operacional da Administração Pública para a Conservação e Melhoramento dos Recursos Genéticos Florestais (Cristina Santos, Ana Almeida e José Manuel Rodrigues, do ICNF). O conjunto dos depoimentos recebidos permite traçar o panorama do mais recente trabalho desenvolvido no nosso país nesta área. No artigo de Benvindo Maçãs et al., do INIAV, esclarece-se o longo processo de criação de novas variedades mais adaptadas a condições sempre em mudança e a importância crescente desse processo. “A resiliência da agricultura depende da adaptação das espécies/variedades aos novos cenários.” O sucesso dessas novas variedades depende, por sua vez, da variabilidade da população de partida e da forma como essa variabilidade é gerida e aumentada. São assim apresentados cinco sistemas nos quais se centra este trabalho desenvolvido no INIAV: sistemas de agricultura extensivos com predomínio da produção vegetal; sistemas de agricultura extensivos de carácter misto (produção vegetal e produção animal); sistemas de produção de arroz; sistemas de pecuária extensiva e sistemas de produção de olival. O objetivo é sempre “o melhoramento de variedades que assegure a segurança alimentar e a transição para a agroecologia”. Por sua vez, o artigo de Ana Maria Barata et al., do Banco Português de Germoplasma Vegetal, versa a importância dos Recursos Genéticos Vegetais e do trabalho que tem vindo a ser desenvolvido nesse domínio em Portugal, na Europa e no mundo, desde sobretudo a década de 1950. Referem as diversas organizações e projetos existentes a vários níveis, salientando a forma como o nosso país se integra desde há muito nessas linhas de trabalho e o incremento na atividade que tem havido recentemente devido às novas tecnologias. Esclarece os contributos dados pelos bancos de germoplasma nacionais para as estratégias nacionais criadas, as iniciativas tomadas em contacto com os agricultores, no terreno, o desenvolvimento das capacidades institucionais e humanas, as parcerias estabelecidas tanto a nível nacional como da UE e globalmente e, acima de tudo, como isso se relaciona com a valorização dos recursos endógenos e locais, nunca perdendo de vista uma visão planetária para a resolução dos problemas da agricultura e da alimentação. Nas Leituras, lemos desta vez: o recente estudo da CAP e da associação P-Bio designado por Agrobiotech, que traça o panorama da aplicação das técnicas da biotecnologia em Portugal para procurar criar uma estratégia comum; um relatório do JRC – Centro Comum de Investigação sobre o estado da arte em matéria de Novas Técnicas Genómicas; um relatório espanhol, da associação Anove e do Institut Cerdà, sobre o setor do melhoramento vegetal e as questões do abastecimento alimentar; e, finalmente, um estudo do IFOAM – Organics International sobre o melhoramento na área da agricultura biológica.

Editorial 11 GRANDES TENDÊNCIAS N.º 30 abril de 2024

12 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 30 ABRIL 2024 – Melhoramento e técnicas genómicas CULTIVAR v.t. TRABALHAR A TERRA PARA TORNÁ-LA FÉRTIL.

13 A importância da (bio)tecnologia para a sustentabilidade dos sistemas alimentares As Novas Técnicas Genómicas no quadro das políticas públicas europeias e internacionais EDUARDO DINIZ1, CRISTINA VASQUES1 e PAULA CARVALHO2 1 Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP) 2 Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) 1. Contexto – As perguntas que necessitam de resposta Está em curso um debate político-institucional no seio das instituições europeias sobre a aplicação da biotecnologia na produção agroalimentar. Este não é um debate novo, mas a proposta de aplicação das denominadas Novas Técnicas Genómicas (NTG), que estão inseridas numa das linhas de trabalho do Pacto Ecológico Europeu (PEE), obrigam a um difícil trabalho de conciliação política para dar resposta a interesses diversos, ou mesmo conflituantes, na utilização da biotecnologia na produção dos alimentos. Antes de nos debruçarmos sobre o intrincado labirinto das negociações e da regulamentação europeias é importante analisar este tema com uma certa distância. Em primeiro lugar, temos de entender o contexto e os objetivos que sustentam quer a necessidade de utilização da biotecnologia, quer a necessidade da sua regulação. Com efeito, a biotecnologia é uma questão instrumental que tem de estar ao serviço de um objetivo primeiro que é o da garantia de uma alimentação disponível, em quantidade e qualidade, para todas as populações. Assim, começamos por formular duas perguntas que necessitam de resposta: —Como garantir simultaneamente o abastecimento alimentar da população mundial e os objetivos para a transição climática? — Qual o contributo da União Europeia para este desafio de um sistema alimentar sustentável? Garantir o abastecimento alimentar significa ter os recursos naturais necessários para produzir alimentos de modo a satisfazer a procura em quantidade e … a biotecnologia é uma questão instrumental que tem de estar ao serviço de um objetivo primeiro que é o da garantia de uma alimentação disponível, em quantidade e qualidade, para todas as populações.

14 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 30 ABRIL 2024 – Melhoramento e técnicas genómicas qualidade de 8,1 mil milhões de pessoas1. O objetivo é garantir a quantidade e qualidade dos alimentos que assegurem o fornecimento das quilocalorias e das características nutritivas adequadas2. Garantir os objetivos da transição climática implica desligar progressivamente o crescimento económico da expansão no uso dos recursos naturais em que, no caso da agricultura, o solo é um elemento central. A curva de crescimento da população, conforme ilustrado no Gráfico 1, foi também acompanhada pelo crescimento da produção agrícola, nomeadamente dos cereais, que são as principais commodities alimentares, com um acréscimo de 34 milhões de toneladas ao ano no período mencionado. Convirá, no entanto, destacar que a expansão do uso do solo, de entrada de novas áreas em produção, foi apenas de 0,5 milhões de hectares por ano. Ou seja, entre 1960 e 2018, a produtividade do solo permitiu que a expansão da área da produção de cereais tenha subido apenas de 648 milhões de hectares para 734 milhões de hectares (13%), ao passo que a população aumentou de cerca de 3 mil milhões de 1 Note-se que a população mundial continua em crescimento: entre 1961-2018 cresceu em média 81 milhões de habitantes por ano. 2 A média em 2005-2007 rondava as 2 700 quilocalorias por habitante. 3 A partir de: Chapter 4 – Climate Change and Future of Agri-Food production, Lalit Kumara et al., in Future Foods Global Trends, Opportunities, and Sustainability Challenges, ed. Rajeev Bhat, 2022. Dados a partir de: Chapter 31 – Agricultural productivity and food supply to meet increased demands, D.M.K.S. Hemathilakea e D.M.C.C. Gunathilake, ibidem. habitantes para 7 mil milhões (230%). 3 De uma forma simplificada, existem apenas duas alternativas: ou reduzimos a procura ou aumentamos a oferta. Quanto à redução da procura, essa solução só poderá ser realizada pelo decréscimo demográfico, pelas alterações dos hábitos de consumo ou pela redução das perdas e desperdício na cadeia de valor agroalimentar. Ora, estas alternativas ou não são plausíveis, como é o caso da redução demográfica (no gráfico anterior, mostrou-se que o acréscimo vai continuar nas próximas décadas, prevendo-se atingir 8,5 mil milhões de habitantes Garantir o abastecimento alimentar significa ter os recursos naturais necessários para produzir alimentos de modo a satisfazer a procura em quantidade e qualidade de 8,1 mil milhões de pessoas. Garantir os objetivos da transição climática implica desligar progressivamente o crescimento económico da expansão no uso dos recursos naturais … Gráfico 1 – Tendência de evolução da população mundial e da produção de cereais e respetiva área no período 1961-20183 De uma forma simplificada, existem apenas duas alternativas: ou reduzimos a procura ou aumentamos a oferta.

A importância da (bio)tecnologia para a sustentabilidade dos sistemas alimentares 15 em 2030 e 9,7 em 2050)4; ou não são apropriadas do ponto de vista global, como é o caso dos hábitos de consumo, tendo em conta que é necessário corrigir, com urgência, a má nutrição e a fome de cerca de 800 milhões de pessoas5, o que não é possível de compensar pela adoção de regimes alimentares “éticos” nos países mais desenvolvidos; ou, ainda, são apenas parcelares, como é o caso do combate ao desperdício alimentar, em que o problema mais sensível está nas perdas ao nível da logística e da conservação dos alimentos nos países em vias de desenvolvimento, e não apenas no excesso de consumo nos países mais desenvolvidos. No caso do aumento da oferta, convirá ter presente que atualmente temos um rácio de 0,27 ha/pessoa para a produção de alimentos e que, a prazo, se desejarmos prosseguir os objetivos da transição climática e, portanto, não aumentar a exploração do recurso solo, esse rácio terá de diminuir para 0,11 ha/pessoa até 2040. Ou seja, o aumento da oferta baseado em práticas iguais às disponíveis hoje em dia ou em sistemas produtivos mais extensivos não se apresenta como uma solução. Com efeito, segundo a OCDE6, para atingir simultaneamente as metas da fome zero e da redução de emissões, a produtividade agrícola média global teria de aumentar 28% nesta década, o que corresponderia a um crescimento superior ao dobro do conseguido na década anterior. 4 A FAO prevê que esse crescimento seja de 1,1% nos próximos 40 anos, comparando com os 2.2% das quatro décadas anteriores. 5 Segundo as metas fixadas no ODS – Objetivo de Desenvolvimento Sustentável n.º 2 – Erradicar a fome, da ONU, o objetivo está fixado em +10%, em média de calorias/pessoa/dia, em países de rendimento médio mais baixo, e em +30%, em média de calorias/pessoa/dia, em países de rendimento baixo. (Ver também Nota 8) 6 OCDE/FAO (2022), OECD-FAO Agricultural Outlook, OECD Agriculture statistics (database), http://dx.doi.org/10.1787/agr-outl-data-en Assim, para dar resposta à primeira questão que colocámos, só será possível atender em simultâneo às necessidades de abastecimento e à transição climática com um incremento muito relevante dos níveis de produtividade, sem contudo deixar de refletir, no médio prazo, sobre qual o grau de trade-off, de compromisso, necessário entre estes dois objetivos. O aumento da eficiência no uso dos recursos naturais, nomeadamente do solo e da água, o uso de variedades mais produtivas e de alimentos mais nutritivos e energéticos, por unidade de peso, só são possíveis de obter com uma contínua modernização das práticas agronómicas e através da integração de conhecimento e tecnologia, em particular da digitalização e da biotecnologia. A biotecnologia tem assim uma centralidade na resposta simultânea às preocupações da transição climática e das necessidades dos agricultores de utilização de variedades mais produtivas. Concluímos, neste ponto, que existe o reconhecimento técnico-científico da importância da biotecnologia, existe o interesse público e privado no seu desenvolvimento. Contudo, a sua utilização suscita reservas legítimas de muitos consumidores, ou mesmo interesses antagónicos, que aconselham a uma regulação pública despida de preconceitos. … existe o reconhecimento técnico-científico da importância da biotecnologia, existe o interesse público e privado no seu desenvolvimento. Contudo, a sua utilização suscita reservas legítimas de muitos consumidores, ou mesmo interesses antagónicos, que aconselham a uma regulação pública despida de preconceitos. … só será possível atender em simultâneo às necessidades de abastecimento e à transição climática com um incremento muito relevante dos níveis de produtividade, sem contudo deixar de refletir, no médio prazo, sobre qual o grau de trade-off, de compromisso, necessário entre estes dois objetivos.

16 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 30 ABRIL 2024 – Melhoramento e técnicas genómicas Por um lado, existe uma pressão, atrás justificada, para se produzir mais alimentos, por outro, existe uma visão conservacionista de que as soluções sustentáveis passam apenas pelas variedades autóctones e seus modos de produção (tradicionais ou de baixa intervenção). 2. Alguns apontamentos históricos A alimentação ganhou hoje uma renovada atualidade no debate no espaço público. Por um lado, persistem, como vimos, problemas de má nutrição em alguns blocos geográficos, com dificuldades ao nível da estruturação da cadeia de produção e fornecimento, por outro lado, nas sociedades da “abundância”, o desperdício e as doenças associadas à obesidade ou outras doenças levantam preocupações públicas. Acresce ainda a pressão ecológica da produção e distribuição dos alimentos exercida sobre os recursos naturais (terra, água e biodiversidade) e o clima. Este contexto é suscetível de pressionar para uma regulação por parte das políticas públicas, mas nem sempre se tem em conta a evolução da história da alimentação e do engenho humano ao longo de séculos, ou milénios, na procura de um abastecimento alimentar regular e saudável. A história da alimentação é um percurso de procura de soluções técnicas na manipulação e domesticação de culturas vegetais e espécies animais. Para refletir sobre a história da alimentação há dois pilares incontornáveis: a evolução tecnológica e a envolvência cultural. Estes dois pilares enformam os sistemas alimentares e não se pode ter a presunção de que a história da alimentação começou hoje. Destacamos em seguida alguns pontos que deveremos ter em conta na elaboração de estratégias ou na regulação dos sistemas alimentares: As plantas e os alimentos viajam e são “apropriados” culturalmente Como primeiro ponto, é importante realçar que as principais culturas que garantem o abastecimento alimentar no mundo são culturas que tiveram origem exótica: é o caso do milho, do trigo, do arroz. Estas culturas têm vindo a ser continuamente melhoradas na resistência a doenças e à seca e ainda no aumento das produtividades unitárias. Do ponto de vista social e patrimonial, são várias as culturas e os alimentos que são “apropriados” culturalmente por diferentes países, geografias e cozinhas. A malagueta é uma referência incontornável na cozinha indiana, mas foi introduzida na Ásia pelos portugueses aquando dos Descobrimentos. O mesmo se pode referir face à mandioca em África, que proveio também da América do Sul. E para dar um exemplo da cozinha europeia, o tomate é um ingrediente comum nos pratos de massa em Itália há apenas 200 anos. Constatamos, assim, que a partilha de variedades mais produtivas ou nutritivas, ao longo dos tempos, foi um avanço civilizacional muito importante e que essa troca teve o potencial de enriquecer culturalmente os diferentes povos. A história da agricultura é uma história de eficiência e introdução de tecnologias Através do engenho humano, foram sendo introduzidas tecnologias para dar resposta às necessidades alimentares e ao bem-estar das populações. A história da alimentação é um percurso de procura de soluções técnicas na manipulação e domesticação de culturas vegetais e espécies animais. Para refletir sobre a história da alimentação há dois pilares incontornáveis: a evolução tecnológica e a envolvência cultural. … é importante realçar que as principais culturas que garantem o abastecimento alimentar no mundo são culturas que tiveram origem exótica: é o caso do milho, do trigo, do arroz.

A importância da (bio)tecnologia para a sustentabilidade dos sistemas alimentares 17 No início, o esforço foi dirigido à domesticação de plantas silvestres e de animais selvagens, tendo-se posteriormente introduzido no processo produtivo a mecanização, a eletricidade, a divisão do trabalho, a eletrónica. Desta forma, nas várias etapas da Revolução Industrial (e da Revolução Verde), a agricultura foi encetando um caminho desde a produção tradicional, limitada na sua dimensão e diversificada a partir das suas fronteiras, tendo-se avançado para uma agricultura de cariz industrial, em que o grande objetivo era o abastecimento uniformizado. Atualmente, procura-se alcançar uma agricultura de precisão e de customização, quer ao nível da exploração agrícola, quer ao nível da logística, para uma satisfação cada vez mais diferenciada dos consumidores. O caminho foi sendo consistente, com ganhos de produtividade e eficiência em que a introdução de tecnologias genéticas teve um papel muito relevante. Este processo foi essencialmente realizado pela seleção das variedades mais adaptadas ao seu uso e beneficiando das mutações naturais que ocorrem nas espécies animais e vegetais. De igual forma, também o homem aprendeu a realizar cruzamentos entre diferentes variedades de plantas ou animais compatíveis, para obter novas caraterísticas e melhores produções. Este processo da transmissão das características dos seres vivos para os seus descendentes, ou seja, a 7 Esta técnica é agora usada em milhares de laboratórios de pesquisa em todo o mundo. A simplicidade da sua implementação permitiu que se difundisse muito rapidamente na comunidade científica. Tudo o que é necessário é uma proteína Cas9 para cortar o ADN e um ARN guia específico para a sequência alvo. O ARN guia, que deve ser adaptado a cada vez, é muito fácil de fabricar, principalmente porque foi desenvolvido um software (de acesso gratuito) para determinar as melhores sequências a utilizar, dependendo do gene ou sequência alvo. hereditariedade, foi descrito em 1860, com o monge austríaco Gregor Mendel, considerado por isso o pai da genética. Posteriormente, com o conhecimento do genoma integral de algumas espécies e com o avanço da engenharia genética, surgiu, após a década de 70, a possibilidade de alterar o ADN e promover a transgénese (introdução de sequências de genes provenientes de outra espécie) como uma evolução do melhoramento genético convencional. Este método dá origem a Organismos Geneticamente Modificados (OGM), o que significa organismos em que o material genético foi alterado de uma maneira que não ocorre naturalmente por acasalamento e/ou recombinação natural. A engenharia genética passou também a utilizar marcadores moleculares que correspondem, basicamente, a uma sequência de nucleótidos, ao nível do ADN. Estes permitem a caracterização genética de diferentes genomas, de forma mais fácil e rápida. A utilização deste tipo de marcadores contribuiu significativamente para a elaboração das primeiras versões de mapas genéticos. Também foram muito utilizados para melhoramento de plantas e de animais, na seleção de características fenotípicas desejáveis. Nos finais do século passado, foi desenvolvido um novo método de modificação do genoma, que foi mesmo distinguido com o Prémio Nobel da Química em 2020, o sistema CRISPR/Cas97. É uma abordagem de edição de genoma simples, Atualmente, procura-se alcançar uma agricultura de precisão e de customização, quer ao nível da exploração agrícola, quer ao nível da logística, para uma satisfação cada vez mais diferenciada dos consumidores. A inovação e a investigação nestes domínios, através destas novas técnicas genómicas, têm, reconhecidamente, um papel muito importante na redução da utilização de produtos fitofarmacêuticos e fertilizantes, permitindo contribuir para a obtenção de alimentos saudáveis com impacto positivo na saúde e no meio ambiente e promovendo assim sistemas agroalimentares mais sustentáveis.

18 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 30 ABRIL 2024 – Melhoramento e técnicas genómicas rápida e eficiente e que tem sido utilizada em diversas aplicações, não só no melhoramento genético, mas também como promissora terapia genética. A inovação e a investigação nestes domínios, através destas novas técnicas genómicas, têm, reconhecidamente, um papel muito importante na redução da utilização de produtos fitofarmacêuticos e fertilizantes, permitindo contribuir para a obtenção de alimentos saudáveis com impacto positivo na saúde e no meio ambiente e promovendo assim sistemas agroalimentares mais sustentáveis. 3. Biotecnologia no desenvolvimento sustentável – políticas públicas internacionais e europeias Para responder à segunda pergunta que formulámos, as políticas traçadas a nível internacional, nomeadamente no que toca aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)8, têm conduzido à necessidade de definição de estratégias, também ao nível da União Europeia (UE), visando dar cumprimento aos objetivos globais. 8 https://ods.pt/ A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, adotada pelas Nações Unidas em 2015 define as prioridades do desenvolvimento sustentável global para 2030 e procura mobilizar esforços globais à volta de um conjunto de objetivos e metas comuns. São 17 os ODS que representam um apelo urgente para uma parceria global. Os ODS reconhecem que a erradicação da pobreza e outras privações devem ser acompanhadas de estratégias que melhorem a saúde e a educação, reduzam a desigualdade e estimulem o crescimento económico – ao mesmo tempo que combatem as alterações climáticas e preservam os ecossistemas. Foi neste contexto que surgiu a Agenda Estratégica, para o quinquénio 2019-2024, da Comissão de Ursula von der Leyen que engloba, como princípios orientadores, o Pacto Ecológico Europeu (PEE) e o desenvolvimento da Economia Digital. Assim, em dezembro de 2019, a Comissão Europeia apresentou o PEE, para adequar as políticas da UE nos domínios do clima, da energia, dos transportes, da fiscalidade e da agricultura aos objetivos de reduzir drasticamente as emissões líquidas de gases com efeito de estufa, permitindo simultaneamente um crescimento económico dissociado da exploração de recursos, para uma transição justa. O PEE assenta em três eixos que visam contribuir para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: — a Estratégia do Prado ao Prato, — a Estratégia para a Biodiversidade — e a Lei Europeia do Clima. Quadro 1 – Iniciativas do Pacto Ecológico Europeu Apresentação Estratégia do Prado ao Prato Regulamento do Uso Sustentável de Produtos Fitofarmacêuticos 2022 – 2.º Trimestre Diretiva das Alegações Ambientais 2023 – 2.º Trimestre Pacote Economia Circular II 2022 – 4.º Trimestre Sistemas Agroalimentares Sustentáveis e Utilização de Recursos 2023 – 2.º Semestre Revisão da Legislação sobre Bem-Estar Animal 2023 – 2.º Semestre Estratégia para a Biodiversidade Regulamento da Restauração da Natureza 2022 – 2.º Trimestre Novo Pacto para os Polinizadores s/ previsão Lei Europeia do Clima FIT for 55 2021 – 2.º Trimestre Diretiva das Emissões Industriais 2022 – 2.º Trimestre Pacote Poluição Zero 2022 – 4.º Trimestre Certificação das Remoções do Carbono 2021 – 3.º Trimestre

A importância da (bio)tecnologia para a sustentabilidade dos sistemas alimentares 19 Estes três eixos do PEE desdobram-se num conjunto alargado de iniciativas legislativas, cujos objetivos, em muitos casos, se cruzam ou se complementam entre si. Para a sua prossecução, contribuem as várias políticas europeias, nomeadamente a Política Agrícola Comum (PAC), na medida em que várias destas iniciativas estão estreitamente relacionadas com o setor agrícola, tendo sido previsto na regulamentação da PAC que os Planos Estratégicos integrariam, durante a sua vigência, a nova legislação em curso no âmbito do PEE. A Estratégia do Prado ao Prato tem por objetivo acelerar a transição da UE para sistemas alimentares sustentáveis e pretende responder à necessidade urgente de reduzir a dependência de pesticidas e antimicrobianos, reduzir o excesso de fertilização, aumentar a conversão para a agricultura biológica, melhorar o bem-estar dos animais e inverter a perda de biodiversidade. Tem como meta, nomeadamente, a alocação de 25% das terras agrícolas da UE para a agricultura biológica até 2030 e a redução do uso de fatores de produção químicos (fertilizantes pesticidas e antibióticos) na produção de alimentos. Na Estratégia do Prado ao Prato está incluído o quadro legislativo denominado “Sistemas Alimentares Sustentáveis”, uma das iniciativas mais emblemáticas, que foi adotado pela Comissão Europeia em julho de 2023 e integra três propostas legislativas muito relevantes para a agricultura: — a Diretiva sobre a Monitorização e Resiliência dos Solos, — a revisão da Diretiva-Quadro dos Resíduos — e um Regulamento sobre os vegetais obtidos através de Novas Técnicas Genómicas. No contexto do presente artigo, debruçamo-nos particularmente sobre a proposta legislativa relativa às plantas obtidas através de novas técnicas genómicas e aos géneros alimentícios e alimentos para animais assim obtidos, que pretende estabelecer as regras a vigorar na União Europeia para a utilização destas técnicas no melhoramento e na obtenção de novas variedades de vegetais. Esta forma de biotecnologia, desenvolvida nas duas últimas décadas, é constituída por um grupo diversificado de técnicas, que podem ser utilizadas de várias formas visando alterar o genoma e alcançar resultados e produtos diferentes. Os objetivos do utilizador e da técnica determinam o tipo e a magnitude da modificação do genoma, que pode variar desde alterações limitadas, até modificações múltiplas com maior ou menor complexidade. A Diretiva 2001/18 regulou os OGM e as regras aplicáveis ao seu cultivo, listando as técnicas de melhoramento que eram excluídas da aplicação desta regulação, em face das técnicas de melhoramento disponíveis (nomeadamente, a mutagénese Quadro 1.1 – Sistemas Agroalimentares Sustentáveis Apresentação Sistemas Agroalimentares Sustentáveis e Utilização de Recursos Lei da Saúde dos Solos 2023 – 3.º Trimestre Plantas Produzidas por Novas Técnicas Genómicas 2023 – 3.º Trimestre Revisão da Diretiva-Quadro sobre Resíduos 2023 – 3.º Trimestre A Estratégia do Prado ao Prato tem por objetivo acelerar a transição da UE para sistemas alimentares sustentáveis e pretende responder à necessidade urgente de reduzir a dependência de pesticidas e antimicrobianos, reduzir o excesso de fertilização, aumentar a conversão para a agricultura biológica, melhorar o bem-estar dos animais e inverter a perda de biodiversidade. … o quadro legislativo denominado “Sistemas Alimentares Sustentáveis”, … foi adotado pela Comissão Europeia em julho de 2023

20 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 30 ABRIL 2024 – Melhoramento e técnicas genómicas induzida) e utilizadas no momento da sua adoção em 2001. No processo C-528/16, de 2018, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) decidiu que as novas técnicas mutagénicas (nomeadamente o sistema CRISPR/Cas9) se enquadram no âmbito desta Diretiva (pois não tinham sido incluídas na lista de técnicas excluídas) e estão sujeitas às obrigações nela previstas. Esta decisão levantou questões práticas, já que em muitas situações os produtos obtidos por meio destas novas técnicas não se conseguem distinguir, usando os métodos atuais, dos produtos resultantes de mutações naturais ou simplesmente induzidas, o que tem tido consequências para as autoridades nacionais competentes, para a investigação, para a indústria, em particular no setor do melhoramento de plantas. Esta decisão originou um posicionamento do Conselho Europeu no sentido de solicitar à Comissão um estudo para clarificação da interpretação do TJUE. O referido estudo foi assim realizado pela Comissão, fundamentado em pareceres da Agência Europeia para a Segurança Alimentar (EFSA), de peritos e de contributos das autoridades competentes dos Estados-Membros e das partes interessadas, a nível da UE, através de consultas específicas, tendo sido tornado público em 29 de abril de 2021. Portugal participou através da Direção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) em articulação com a Agência Portuguesa do Ambiente (APA). O estudo permitiu concluir que os recentes desenvolvimentos em biotecnologia, a par com a ausência de léxico e de definições adequados na legislação dos OGM, podiam dar origem a ambiguidades na interpretação de alguns conceitos, podendo gerar incertezas do ponto de vista da regulamentação, 9 https://food.ec.europa.eu/plants/genetically-modified-organisms/new-techniques-biotechnology/ec-study-new-genomic-techniques_en 10 https://food.ec.europa.eu/plants/genetically-modified-organisms/new-techniques-biotechnology_en existindo ainda “fortes indícios” de que a “legislação atual não seria adequada para algumas NTG e produtos derivados, devendo ser adaptada ao progresso científico e tecnológico”.9 No Conselho de Ministros da Agricultura e Pescas de maio de 2021 (durante a Presidência Portuguesa da UE), foram debatidas as conclusões deste estudo da Comissão, reconhecendo-se a necessidade de modernizar a legislação vigente, apesar das particularidades e desafios apresentados por essa modernização. Neste sentido, a Comissão apresentou, em julho de 2023, e no âmbito do denominado Pacote para a Utilização Sustentável de Recursos Naturais Essenciais, a proposta de Regulamento para plantas obtidas por NTG destinadas à produção alimentar e de alimentos para animais. Esta proposta fez parte de um pacote de propostas legislativas destinadas a implementar as estratégias da UE do Prado ao Prato e da Biodiversidade.10 A proposta de Regulamento tem por objetivo essencial criar um quadro de autorização específico para as plantas obtidas por NTG. No enquadramento atual, estas estavam sujeitas à legislação aplicável aos OGM; contudo, as diferenças entre estes e as NTG justificam uma abordagem distinta. Pretendeu-se assim criar um quadro legal próprio para as variedades vegetais obtidas por NTG diferente do existente para os OGM, como reação à decisão do TJUE. Do ponto de vista técnico-científico, esta proposta de Regulamento enquadra o uso de técnicas de modificação genética em vegetais que são suscetíveis de ocorrer na natureza ou por técnicas convencionais de melhoramento. As técnicas agora regulamenta- … em muitas situações os produtos obtidos por meio destas novas técnicas não se conseguem distinguir, usando os métodos atuais, dos produtos resultantes de mutações naturais ou simplesmente induzidas, o que tem tido consequências para as autoridades nacionais competentes, para a investigação, para a indústria, em particular no setor do melhoramento de plantas.

A importância da (bio)tecnologia para a sustentabilidade dos sistemas alimentares 21 das são a mutagénese dirigida ou induzida e a cisgénese: —o uso de técnicas de mutagénese dirigida resulta em modificações da sequência do ADN em locais precisos do genoma de um organismo; —a cisgénese é uma técnica de modificação genética que resulta na inserção, no genoma de um organismo, de material genético já presente no património genético à disposição dos obtentores tal como poderá ocorrer na natureza – por exemplo, introduzindo material genético de uma cenoura selvagem numa cenoura cultivada. Pretende-se assim estabelecer uma diferença clara entre as plantas obtidas por NTG, em que apenas se utiliza ADN de plantas suscetíveis de se cruzarem na natureza ou por melhoramento vegetal convencional, e as geneticamente modificadas (OGM) resultantes da inserção de material genético de outras espécies que não se cruzariam na natureza. De acordo com a conclusão do estudo da Comissão, as NTG não são passíveis de serem diferenciadas, por técnicas laboratoriais de deteção, das plantas obtidas por melhoramento convencional, por exemplo, mutagénese in vivo. A mutagénese, enquanto NTG, conduz aos mesmos resultados da mutagénese convencional, a qual tem sido fundamental para o melhoramento de plantas promovido pelos agricultores ou pelos melhoradores. De referir que no âmbito da proposta de Regulamento são definidas duas categorias distintas de NTG, tendo em vista a colocação destes vegetais no mercado: ● Categoria NTG 1 – Os vegetais, a sua descendência ou os produtos a que dão origem, obtidos por qualquer das técnicas, mutagénese dirigida e/ou cisgénese, que podem ocorrer na natureza ou por técnicas de reprodução convencional. A proposta de Regulamento prevê que os vegetais NTG que cumpram estes critérios sejam tratados como vegetais convencionais e isentos dos requisitos da legislação relativa aos OGM. Prevê igualmente que as informações sobre as plantas NTG da Categoria 1 apenas sejam indicadas na rotulagem dos materiais de multiplicação de plantas, numa base de dados pública e através dos catálogos pertinentes sobre variedades vegetais, ou seja, as exigências de rotulagem referem-se apenas aos materiais de multiplicação de plantas e não aos produtos. ● Categoria NTG 2 – Os vegetais, a sua descendência ou os produtos a que dão origem, que não são os da Categoria 1 e os vegetais obtidos por técnicas genómicas que dificilmente ocorreriam por técnicas de reprodução convencional estarão subordinados à legislação relativa aos OGM. Estas plantas devem estar sujeitas a uma avaliação dos riscos e a uma autorização, antes de poderem ser colocadas no mercado. Devem, neste caso, ser sujeitos a um sistema de rastreabilidade e rotulagem como o aplicado aos OGM. A proposta de Regulamento encontra-se, nesta data, em fase de discussão em sede do Grupo de Trabalho do Conselho, não tendo ainda sido possível, pese embora os esforços das presidências espanhola e belga, obter acordo quanto a um texto de compromisso, para que se possam iniciar as negociações com o Parlamento Europeu (PE), de modo a obter uma redação final consensual entre estes dois órgãos. Pretende-se estabelecer uma diferença clara entre as plantas obtidas por NTG, em que apenas se utiliza ADN de plantas suscetíveis de se cruzarem na natureza ou por melhoramento vegetal convencional, e as geneticamente modificadas (OGM) resultantes da inserção de material genético de outras espécies que não se cruzariam na natureza.

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