Cultivar_31

As Guerras do Trigo – uma história geopolítica dos cereais 125 que o cultivo de cereais “teve origem em habitats húmidos – perto de nascentes ou lagos – encontrados pelos viajantes por entre regiões de recursos limitados e valiosos”. Os primeiros produtores de trigo podem ter sido viajantes ou mercadores que, após décadas de migração, se foram fixando nesses pontos de passagem e onde se iam estabelecendo comunidades. Nessa altura já existiam os “trilhos negros”, que levavam das férteis estepes ucranianas até aos portos do Mar Negro. À medida que se foram desenvolvendo ao longo das rotas comerciais, os impérios assimilaram e adaptaram as técnicas de produção dos cereais e das leveduras, evoluíram para incorporar e centralizar o armazenamento e distribuição de cereais, aproveitando as ligações entre as comunidades agrícolas. “Os impérios aparecem e desaparecem, mas as tecnologias de plantio, colheita, conservação e transformação de alimentos continuam a ser os seus alicerces mais sólidos”. Entre 541 e 1347, o domínio do pão foi incorporado nas leis dos impérios medievais europeus, norte-africanos e árabes que rodeavam o Estreito do Bósforo, obrigando a conflitos e poder instável no controlo da colheita dos cereais e do fabrico do pão. Os Impérios Grego, Romano e Bizantino não constituíram rotas de cereais, mas foram os precursores dos armazéns modernos. Com base num recibo de cereais armazenados – documento que era utilizado como garantia para contratos ou apreendido em caso de dívida –, era possível comprar e vender cereais. Estes recibos de cereais tornaram-se coletivamente aquilo que hoje chamamos “dinheiro”. Os Impérios Otomano e Russo expandiram-se ao longo das rotas dos cereais, apoderando-se e estabelecendo feudos e dinastias medievais. Para a Rússia, o acesso ao Mar Negro foi sempre fundamental no âmbito dos planos de integração destas terras do pão, no pressuposto de que os impérios só sobre2 Na altura, o Sul da Polónia. 3 Peste bubónica, ou peste negra 4 Grupo de economistas e conselheiros imperiais franceses que viam a economia como uma troca de bens entre agricultores, latifundiários, artesãos e mercadores, podendo a exportação de cereais, devidamente organizada, ser a base da riqueza de um império. Acreditavam que os mercadores que exportavam cereais eram benéficos para um império, pois trocavam os excedentes de cereais por bens estrangeiros escassos, e defendiam o apoio estatal ao cultivo dos cereais, a eliminação de barreiras internas ao seu comércio, a generalização da escolaridade e o controlo rigoroso das importações e exportações. vivem na medida em que controlam as fontes de alimento necessárias para sustentar soldados e cidadãos, financiando-se através da tributação dos que os vendem. Um dos locais que os czares russos precisavam de controlar era a região da Podólia2, hoje a Ucrânia Ocidental e a região vizinha de Kiev. Nessa vasta zona plana e húmida, o solo argiloso e negro, chamado chernozem, é um dos locais no planeta mais privilegiados para o cultivo dos cereais, como o trigo e o centeio. A partir do século V a.C., o trigo cultivado nesta zona decompôs-se em variedades regionais adaptadas a várias combinações de clima, tipo de solo e níveis de humidade, tendo milhares de camponeses desconhecidos legado algo valioso para a sobrevivência da humanidade. O centeio, originalmente uma erva daninha que crescia junto ao trigo, também se subdividiu em subespécies, adaptando- -se a climas mais frios e expandindo-se para norte. A posterior colonização do Canadá Ocidental, do Norte dos Estados Unidos, da Argentina e da Austrália teria sido impossível sem as muitas espécies de trigo que se desenvolveram ao longo dos séculos nesta região. Entre o ano 300 e 1762, altura em que o Yersina Pestis3 colonizou as rotas de comércio, os impérios tinham sido obrigados a inovar a fim de se protegerem. Na década de 1760, a relação entre o império e os cereais sofreu uma nova mudança sob o reinado da czarina Catarina II, a Grande, que, influenciada pelos fisiocratas4, instaurou, de forma inédita, a política de venda de cereais não processados com vista a aumentar a dimensão do Império Russo. Fundou a Sociedade Económica Livre, uma instituição destinada a promover novos métodos de plantação, de lavoura e de rotação de culturas, bem como o uso

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