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CULTIVAR CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA N.32 | dezembro 2024 | Cooperativas

1 CULTIVAR Cadernos de Análise e Prospetiva

CULTIVAR Cadernos de análise e prospetiva® N.º 32 | Cooperativas | dezembro de 2024 Propriedade Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP) Praça do Comércio, 1149-010 Lisboa Telefone: + 351 213 234 600 e-mail: geral@gpp.pt | website: www.gpp.pt Equipa editorial Coordenação: Ana Sofia Sampaio, Bruno Dimas, Eduardo Diniz Ana Filipe Morais, Ana Rita Moura, António Cerca Miguel, João Paulo Marques, Mafalda Gaspar, Manuel Loureiro, Pedro Castro Rego, Rui Trindade e-mail: cultivar@gpp.pt Colaboraram neste número Alexandra Cuco, Bárbara Steiger Garção, Carlos Miranda, Edna Neves, Eduardo Gabirra, Eduardo Pedroso, Eduardo Reis, Filipa Farelo, Francisco Caldeira, Helder Transmontano, Idalino Leão, Jean-Baptiste Fauré, Jorge Miranda, Jos Bijman, José Oliveira, José Manuel Garcia Duarte, José Marques, Machiel Kommers, Manuel Gabirra, Margarida Furtado, Mariana Figueiredo, Paula Geadas, Philippe Duclaud, Susana Gaspar, Telma Oliveira, Vanessa Lopes Edições anteriores: https://www.gpp.pt/index.php/publicacoes-gpp/cultivar-cadernos-de-analise-e-prospetiva Edição: Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP) Execução gráfica e acabamento: Sersilito – Empresa Gráfica, Lda. Tiragem: 1 000 exemplares ISSN: 2183-5624 Depósito Legal: 394697/15

CULTIVAR Cadernos de Análise e Prospetiva N.º 32 dezembro de 2024 Cooperativas

Índice 7/11 | EDITORIAL SECÇÃO I – GRANDES TENDÊNCIAS 15/18 | A INICIATIVA COOPERATIVA NA CONSTITUIÇÃO Jorge Miranda 19/25 | EVOLUÇÃO DA COOPERAÇÃO AGRÍCOLA EM FRANÇA E DESAFIOS FUTUROS EVOLUTIONS DE LA COOPÉRATION AGRICOLE EN FRANCE ET DÉFIS À VENIR Philippe Duclaud e Jean-Baptiste Fauré 27/41 | O QUE FAZ O SUCESSO DAS COOPERATIVAS AGRÍCOLAS NOS PAÍSES BAIXOS? WHAT MAKES AGRICULTURAL COOPERATIVES IN THE NETHERLANDS SUCCESSFUL? Jos Bijman 43/46 | CULTIVAR COOPERATIVAS NO SÉCULO XXI Idalino Leão SECÇÃO II – OBSERVATÓRIO 49/62 | AS COOPERATIVAS EM NÚMEROS Rui Trindade e Ana Rita Moura 63/70 | A PERSPETIVA DAS COOPERATIVAS Carlos Miranda, José Oliveira, José Manuel Garcia Duarte e Manuel Gabirra 71/74 | GRUPO LACTOGAL: UM EXEMPLO SINGULAR NO SETOR AGROALIMENTAR PORTUGUÊS José Marques 75/78 | ANO INTERNACIONAL DAS COOPERATIVAS 2025: MODERNIZAÇÃO, SUSTENTABILIDADE E INOVAÇÃO NO SETOR COOPERATIVO Filipa Farelo, Edna Neves e Eduardo Pedroso

6 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 32 DEZEMBRO 2024 – Cooperativas 79/83 | ANO INTERNACIONAL DAS COOPERATIVAS 2025, UMA VISÃO GLOBAL Mafalda Gaspar 85/95 | A PRODUÇÃO ORGANIZADA E O SETOR COOPERATIVO Bárbara Steiger Garção, Francisco Caldeira e Susana Gaspar 97/102 | COOPERATIVAS: REINVENTAR A ECONOMIA ENTRE TRADIÇÃO E INOVAÇÃO Alexandra Cuco SECÇÃO III – LEITURAS 105/107 | A ECONOMIA COOPERATIVA Síntese do Relatório Exploring the cooperative economy, World Cooperative Monitor, 2024, por João Paulo Marques 109/112 | COOPERATIVAS AGRÍCOLAS: SUSTENTABILIDADE, COMBATE AO OPORTUNISMO NA CADEIA DE VALOR E PROPRIEDADE Resumo de dois artigos científicos de 2024: “The role of agricultural cooperatives in mitigating opportunism in the context of complying with sustainability requirements: empirical evidence from Spain”, de Jorge Luis Sánchez-Navarro et al., e “Firm ownership and ESG performance in European agri-food companies: The mediating effect of risk-taking and time horizon”, de Megi Gega et al. 113/115 | COOPERATIVAS AGRÍCOLAS, SUSTENTABILIDADE E NOVAS GERAÇÕES Breve resumo da brochura Agri-cooperatives cultivate sustainable solutions for farmers, business partners and consumers, COPA-COGECA, 2024

7 Cooperativas é o tema escolhido para o n.º 32 da Cultivar – Cadernos de análise e prospetiva no qual procuramos, como habitualmente, fornecer alguns dados de caracterização e partilhar análises. A principal questão para reflexão é: o modelo cooperativo, sobretudo no setor agroalimentar, dá uma resposta vantajosa para os produtores se adaptarem ao contexto económico, social e tecnológico e às suas mudanças? As cooperativas são um tipo de organização que se insere num quadro da Economia Social, a qual abrange um conjunto diversificado de organizações, como cooperativas, associações mutualistas, fundações e instituições de solidariedade social, que operam com base em princípios de solidariedade, participação democrática e primazia das pessoas sobre o capital. A criação das cooperativas agrícolas remonta ao século XIX, início do século XX, surgindo como resposta às necessidades dos agricultores em matéria de crédito, seguros, acesso a serviços e fatores e negociação comercial para o escoamento da produção. Estas associações foram-se institucionalizando e ganhando autonomia através de legislação específica, permitindo que se expandissem e se consolidassem como agentes económicos relevantes. Em Portugal, com maior ou menor intervenção do Estado, o movimento cooperativo expandiu-se e tem um reconhecimento institucional, sendo protegido na nossa Constituição, como é descrito pelo Professor Jorge Miranda no seu artigo desta edição. Contudo, a economia nacional e o setor agrícola desenvolvem-se, quer a nível do mercado único europeu quer no comércio com países terceiros, essencialmente num modelo de Economia de Mercado que opera num sistema onde a alocação de recursos é determinada principalmente pela oferta e procura, sendo o lucro o principal motor das empresas. Este modelo tende a incentivar a inovação, a eficiência produtiva e a competitividade, resultando em maior crescimento económico e diversidade de produtos e serviços. Mas há que reconhecer que as condições de funcionamento eficiente dos mercados têm muitas exceções, nomeadamente quando se põem em concorrência pequenos produtores face a grandes grupos empresariais, com poderes negociais muito assimétricos. Deste modo, a Economia Social pode complementar a Economia de Mercado com abordagens distintas da organização da atividade económica. Editorial EDUARDO DINIZ Diretor-geral do GPP

8 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 32 DEZEMBRO 2024 – Cooperativas No setor agroalimentar, há algum afastamento das condições para o mercado funcionar sem distorções, nomeadamente por existirem assimetrias de informação com enviesamento desfavorável aos agricultores (a este propósito ler a ficha de leitura sobre o artigo de Jorge Luis Sánchez-Navarro et al., relativo a sustentabilidade e combate ao oportunismo na cadeia de valor) e poderes negociais desiguais derivados da muito maior dimensão económica da indústria e da distribuição. As cooperativas ajudam a mitigar esse problema ao permitir a negociação coletiva, o acesso a conhecimento e a criação de estruturas que reforçam o poder negocial dos seus membros, promovendo assim a viabilidade das unidades produtivas. Contudo, as necessidades resultantes do aumento da dimensão e diversificação económica das grandes cooperativas, implicando uma maior complexidade organizativa, nomeadamente pela combinação do modelo cooperativa-empresa, levantam questões sobre a identidade cooperativa e a sua eficácia. A vocação social e inclusiva das cooperativas coloca desafios inerentes à sua estrutura. A heterogeneidade dos membros pode dificultar a tomada de decisão e a gestão eficiente dos recursos, levando a potenciais conflitos de interesse. Além disso, a necessidade de capital próprio para expandir operações pode ser um obstáculo, dado que muitas destas organizações dependem de financiamento externo ou de apoio estatal. Com o tempo, algumas cooperativas, como podemos ler no artigo de Jos Bijman sobre a experiência nos Países Baixos, adotaram modelos de governação mais profissionalizados, reduzindo a influência direta dos membros nas decisões operacionais e incorporando especialistas externos nos seus órgãos de supervisão. A relação entre Economia Social e Economia de Mercado reflete-se, assim, num equilíbrio dinâmico entre eficiência económica e justiça social. A Economia Social oferece um modelo alternativo ao capitalismo tradicional, colocando o bem-estar coletivo no centro das suas preocupações, mas enfrenta desafios na gestão e na competitividade. Já a Economia de Mercado, embora eficaz em termos de crescimento e inovação, pode gerar exclusão e vulnerabilidades. O desafio atual passa por encontrar formas de integrar ambos os modelos, promovendo um desenvolvimento económico sustentável que combine os benefícios da eficiência de mercado com os princípios de solidariedade e equidade da Economia Social, o que se afigura ser a receita dos casos de sucesso de muitas cooperativas agroalimentares no ativo. Nesta edição, procurámos assim, como referido, refletir sobre todas estas vertentes e sensibilidades e sobre as opções que se oferecem ao setor cooperativo e aos cooperadores. O artigo de Jorge Miranda, que abre a secção Grandes Tendências, analisa a forma como a iniciativa cooperativa tem vindo a ser tratada em Portugal em termos constitucionais, destacando os avanços da Constituição de 1976 na proteção do setor cooperativo no âmbito da economia mista. A Constituição assegura o direito à criação e organização de cooperativas com base nos princípios cooperativos, permitindo liberdade de formação, organização e gestão, e agrupamento em uniões ou confederações, e admitindo igualmente a possibilidade de benefícios fiscais e financeiros para promover a sustentabilidade do setor. Os princípios cooperativos, baseados na adesão livre, na gestão democrática e na participação económica, são reconhecidos constitucionalmente Adega Cooperativa de Alcobaça, curso de extensão rural, 1978 Fotografia de Jaime Brás Acervo do GPP

Editorial 9 como normas de origem consuetudinária, limitando a atuação legislativa e garantindo a proteção das cooperativas. O autor conclui afirmando que este é “um domínio privilegiado para (… ) a realização da democracia económica e social.” O artigo de Phillippe Duclaud e Jean-Baptiste Fauré aborda a evolução do cooperativismo agrícola em França, desde as suas origens no final do século XIX, com a formalização das primeiras cooperativas modernas, até à atualidade. Estas organizações desempenharam um papel decisivo na reconstrução do pós-guerra, na modernização da agricultura e na promoção da soberania alimentar. Regidas pelos princípios do cooperativismo, conseguiram adaptar-se às mudanças económicas e sociais, consolidando-se e expandindo-se internacionalmente. A criação, em 2006, do Conselho Superior da Cooperação Agrícola, e posteriormente da figura do Mediador da Cooperação Agrícola, permitiu regular e resolver alguns dos problemas que se tinham vindo a colocar devido a essa expansão e concentração, bem como ajudar a refletir sobre os desafios que se colocam a todo o setor agrícola: “os princípios que regem as cooperativas, embora antigos, parecem particularmente bem-adaptados para orientar as transformações necessárias”. Jos Bijman analisa as razões do sucesso histórico das cooperativas agrícolas nos Países Baixos e os desafios que enfrentam atualmente. Reconhecidas pela sua capacidade de adaptação às mudanças económicas, sociais e tecnológicas, as cooperativas desempenham um papel crucial no setor agrícola neerlandês, mantendo uma presença no mercado estável e significativa. O autor destaca como fatores de sucesso, além de características ligadas ao contexto institucional e histórico, como a necessidade de auto-organização relacionada com constrangimentos territoriais ou o elevado nível de confiança mútua, a eficácia dos mecanismos encontrados para a governação interna ou a homogeneidade entre membros. O último ponto do artigo aborda não só os desafios atuais, sobretudo relacionados com a sustentabilidade ambiental, mas também as oportunidades associadas à procura crescente de produtos regionais e de elevada qualidade, produzidos de forma justa e sustentável. “O modelo cooperativo tem um passado de sucesso e a sua versatilidade, resiliência e legitimidade fazem prever que terá um futuro igualmente brilhante.” Idalino Leão faz uma análise do cenário atual do setor agrícola português, marcado por desafios globais, como a volatilidade dos mercados, e locais, como a fragmentação da produção. Destaca a importância estratégica das cooperativas agrícolas para reforçar a competitividade e a sustentabilidade do setor, promovendo a coesão territorial e reduzindo desigualdades na cadeia agroalimentar. O autor salienta a necessidade de modernizar e redimensionar estas organizações, com apoio de políticas públicas e instrumentos financeiros específicos. Releva o papel da CONFAGRI no apoio ao cooperativismo, promovendo inovação, capacitação e práticas sustentáveis para garantir o equilíbrio entre a soberania alimentar e as exigências do mercado global. A concluir, afirma a necessidade de “uma abordagem equilibrada que preserve os princípios básicos da cooperação, como a solidariedade e a democracia interna, ao mesmo tempo que adota práticas que reforcem a concorrência.” A secção Observatório abre com um artigo de Rui Trindade e Ana Rita Moura, que coligiram informaSilos verticais, Moura, 1954 Fotografia de Artur Pastor Acervo do GPP

10 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 32 DEZEMBRO 2024 – Cooperativas ção suficiente para fazerem uma caracterização económica e demográfica das cooperativas agrícolas em Portugal. Recorrendo a dados de diversas proveniências, o estudo evidencia a relevância do setor agrícola no contexto cooperativo, sublinhando que das 100 maiores cooperativas do país, cerca de 80% pertencem ao setor agrícola e das pescas. A informação é apresentada em mapas e gráficos que mostram com clareza os pontos mais relevantes da análise efetuada. Os autores chamam ainda a atenção para o facto de o setor enfrentar desafios relacionados com lacunas de informação, dificultando análises aprofundadas e políticas mais eficazes, e destacam a necessidade de melhorias na recolha de dados. No artigo “A perspetiva das cooperativas”, Carlos Miranda, José Oliveira, José Manuel Garcia Duarte e Manuel Gabirra disponibilizam-se a responder a duas perguntas que colocámos, apresentando pontos fortes e fracos da sua experiência como dirigentes de cooperativas importantes de diversos setores e regiões do país. Ainda sob esta perspetiva, José Marques apresenta o Grupo Lactogal e o seu trabalho em termos de inovação, sustentabilidade e responsabilidade social. Resultado da fusão de três cooperativas de grande dimensão, o grupo adota práticas inovadoras para garantir qualidade, bem-estar animal e eficiência hídrica, além de promover a circularidade e a redução de emissões. Iniciativas como o Planeta Leite, que visa obter impacto nulo nas emissões de CO2, ou outras ligadas à nutrição saudável e ao apoio à comunidade, sublinham estas preocupações ambientais e sociais. O artigo de Filipa Farelo et al. começa por destacar brevemente o impacto do Ano Internacional das Cooperativas 2025 (AIC 2025), proclamado pela ONU, que salienta o papel essencial das cooperativas na construção de um mundo melhor. Em Portugal, o Programa de Apoio às Cooperativas promove a modernização e a digitalização do setor cooperativo, e os seus resultados são aqui apresentados. O artigo destaca ainda a importância da sustentabilidade ambiental e social no cooperativismo e a necessidade de atrair jovens, que têm uma especial apetência por estas questões, para o setor. Para 2025, prevê-se um reforço do Programa de Apoio no âmbito do Ano Internacional, com conferências e ações de sensibilização para destacar o contributo das cooperativas no cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), por exemplo. No primeiro dos três outros artigos do Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral (GPP) desta edição, Mafalda Gaspar analisa mais detalhadamente, e de uma perspetiva global, a relevância do AIC 2025. Destaca o papel das cooperativas na recuperação económica pós-pandemia, no combate à fome e na promoção da segurança alimentar. Refere que a iniciativa, lançada na Conferência Global da Aliança Cooperativa Internacional, em Nova Deli, inclui quatro pilares: identidade cooperativa, políticas de apoio, liderança inclusiva e futuro sustentável. As cooperativas são vistas como instrumentos essenciais para o desenvolvimento rural, promovendo a inclusão social, a equidade de género e a sustentabilidade. A concluir, apresenta um breve resumo do impacto das cooperativas em termos de segurança alimentar e resiliência económica nos diferentes continentes. Bárbara Steiger Garção et al. abordam o papel das Organizações de Produtores (OP) no reforço da produção agrícola em Portugal, destacando a sua importância na concentração da produção e no Cooperativa Agrícola de Mangualde, linha de lavagem de Maçã da Beira Alta, 2001 Fotografia de Luís Braz Acervo do GPP

Editorial 11 fortalecimento da posição dos agricultores no mercado. Analisam a evolução das OP, sublinhando o crescimento do respetivo Valor da Produção Comercializada (VPC), e o papel das cooperativas agrícolas, que representam cerca de metade das OP reconhecidas: em 2022, as cooperativas geraram 53% do VPC destas organizações. É também analisada a distribuição das OP por forma jurídica, setor e região. Apesar da redução no número de OP reconhecidas, há uma tendência de aumento da dimensão e eficiência das existentes. O artigo sublinha ainda que o apoio financeiro e legislativo tem promovido a resiliência e a sustentabilidade das OP. A fechar esta secção, Alexandra Cuco efetua uma breve abordagem à caracterização das cooperativas, tendo como pano de fundo o regime jurídico, a sua evolução, e as suas repercussões na Economia Social do ponto de vista do setor agrícola. Abordam- -se ainda alguns dos desafios com que as cooperativas atualmente se deparam num mercado cada vez mais globalizado, abrindo assim um convite à reflexão. A secção Leituras apresenta a abrir uma síntese do mais recente relatório da organização World Cooperative Monitor, que aborda precisamente o tema da identidade cooperativa; segue-se um resumo de dois artigos científicos recentes sobre a importância das cooperativas na cadeia de valor e a comparação com outros tipos de empresas sob determinados parâmetros; e, a concluir, um breve resumo de uma brochura da COPA-COGECA sobre a sustentabilidade da solução cooperativa.

Editorial 13 GRANDES TENDÊNCIAS N.º 32 dezembro de 2024

CULTIVAR v.t. TRABALHAR A TERRA PARA TORNÁ-LA FÉRTIL.

15 A iniciativa cooperativa na Constituição1 JORGE MIRANDA Professor catedrático jubilado das Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa e jurisconsulto 1 Artigo adaptado pelo autor a partir do seu Parecer intitulado “Cooperativas e Crédito Agrícola Mútuo”, publicado na revista O Direito, Ano 153.º, 2021, Almedina, à qual a equipa editorial da Cultivar agradece a autorização de republicação. https://icjp.pt/publicacoes/pub/3/33609/ view 2 Constituição Política da República Portuguesa, 1933: https://www.parlamento.pt/Parlamento/Documents/CRP-1933.pdf 3 Constituição da República Portuguesa Texto originário (1976): https://www.parlamento.pt/parlamento/documents/crp1976.pdf; VII Revisão constitucional (2005): https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx 1. A Constituição de 19332 foi a primeira Constituição portuguesa a referir-se às cooperativas, incumbindo o Estado de promover “a formação e o desenvolvimento da economia social cooperativa” (Artigo 34º). Mas foi a Constituição de 19763 que lhes dedicou mais significativos avanços no âmbito da economia mista [limites materiais de revisão constitucional, segundo o Artigo 288.º, alíneas f) e g)]. Fá-lo, quer na Parte I, de Direitos fundamentais (a partir do artigo 61.º, n.ºs 2 e 3), quer na Parte II, de Organização económica, com base no artigo 80.º, alíneas b) e f), quer ainda dentro da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165.º, n.º 1, alínea x)] e dos limites materiais de revisão constitucional [artigo 288.º, alíneas f) e g), como acima referido]. Como se lê: — A todos é reconhecido o direito à livre constituição de cooperativa, desde que observados os princípios cooperativos (artigo 61.º, n.º 2). —As cooperativas desenvolvem livremente as suas atividades no quadro da lei e podem agrupar-se em uniões, federações e confederações e em outras formas de organização legalmente previstas (artigo 61.º, n.º 3). A lei estabelece as especificidades organizativas das cooperativas com participação pública (artigo 61.º, n.º 4). — As cooperativas de consumo têm direito, nos termos da lei, ao apoio do Estado e a ser ouvidas sobre as questões que dizem respeito à defesa dos consumidores, sendo-lhes reconheA todos é reconhecido o direito à livre constituição de cooperativa, desde que observados os princípios cooperativos.

16 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 32 DEZEMBRO 2024 – Cooperativas cida legitimidade processual para defesa dos seus associados ou de interesses coletivos ou difusos (artigo 60.º, n.º 3). — Para assegurar o direito à habitação incumbe ao Estado fomentar a criação de cooperativas de habitação [artigo 65.º, n.º 2, alínea d), 2.ª parte]. —O Estado reconhece e fiscaliza o ensino cooperativo (artigo 75.º, n.º 2, 2.ª parte]. —O apoio do Estado aos pequenos e médios agricultores compreende estímulos ao associativismo dos trabalhadores rurais e dos agricultores, nomeadamente a constituição por eles de cooperativas de produção, de compra, de venda, de transformação e de serviços [artigo 97.º, n.º 2, alínea d)]. — A organização económico-social assenta, entre outros princípios (artigo 80.º), na coexistência do setor público, do setor privado e do setor cooperativo de propriedade dos meios de produção [alínea b)]; na liberdade de iniciativa e de organização económico-social no âmbito de uma economia mista (alínea c)]; na proteção do setor cooperativo e social de meios de produção [alínea f)]. —O Estado estimula e apoia a criação e a atividade das cooperativas (artigo 85.º, n.º 1) e a lei definirá os seus benefícios fiscais e financeiros, bem como condições mais favoráveis à obtenção de crédito e auxílio técnico (artigo 85.º, n.º 2). 2. Verifica-se, pois, que não se contempla apenas um direito negativo, o direito de liberdade cooperativa. A seu lado, estabelecem-se direitos positivos, direitos à promoção de cooperativas em áreas tão diferentes como as do consumo, da habitação, do ensino e da agricultura (o que, evidentemente, não impede que haja cooperativas noutras áreas). O setor cooperativo compreende especificamente os meios de produção possuídos e geridos por cooperativas, em obediência aos princípios cooperativos, sem prejuízo das especificidades estabelecidas na lei para as cooperativas com participação pública, justificadas pela sua natureza [artigo 82.º, n.º 4, alínea a)]. Há uma vertente interna e uma vertente externa, a par da vertente positiva e da vertente negativa. Como elucidam António de Sousa Franco e Guilherme d’Oliveira Martins, a Constituição consagra uma segunda modalidade de iniciativa cooperativa e de alguma medida dela derivada: a liberdade de atuação das cooperativas e a liberdade de agrupamento em uniões e confederações. Ou, segundo Evaristo Ferreira Mendes, a liberdade de organização postula, ao mesmo tempo, a faculdade de cada cooperativa se juntar a outra ou outras em uniões, federações e confederações e, por conseguinte, a liberdade de escolha do grau de agrupamento e o estabelecimento do tempo e do modo da correspondente organização. Isto quanto à vertente positiva: querer agrupar-se. Entretanto, não pode obliterar-se a vertente negativa: não querer agrupar-se; e a vontade dos cooperadores há de ser respeitada, porque estamos diante de um direito de liberdade (insista-se). O regime dos meios de produção integrados no setor cooperativo recai na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 165.º, n.º 1, alínea x)]. O apoio do Estado aos pequenos e médios agricultores compreende estímulos ao associativismo dos trabalhadores rurais e dos agricultores, nomeadamente a constituição por eles de cooperativas … Isto quanto à vertente positiva: querer agrupar-se. Entretanto, não pode obliterar-se a vertente negativa: não querer agrupar-se; e a vontade dos cooperadores há de ser respeitada, porque estamos diante de um direito de liberdade (insista-se).

A iniciativa cooperativa na Constituição 17 As leis de revisão constitucional terão de respeitar a coexistência do setor público, do setor privado e do setor cooperativo e social dos meios de produção [artigo 288.º, alínea f)] e a existência de planos económicos no âmbito de uma economia mista [artigo 288.º, alínea g)]. 3. Para efeito de regime constitucional, as cooperativas definem-se através de certos parâmetros: os princípios cooperativos [artigos 61.º, n.º 2, e 82.º, n.º 4, alínea a)]. Somente as empresas que os observem beneficiam do auxílio do Estado, em verdadeira discriminação positiva [artigos 60.º, n.ºs 2 e 3, 1.ª parte, 65.º, n.º 2, alínea b), e 97.º, n.ºs 1 e 2], e têm direitos de participação (artigo 60.º, n.º 3); e não são tidas como “entidades da mesma natureza” das empresas privadas, nos setores vedados à iniciativa privada (artigo 86.º, n.º 3, 2.ª parte) nem podem sofrer intervenção do Estado na sua gestão (artigo 86.º, n.º 2, a contrario). A Constituição não enuncia esses princípios, nem indica a sua sede ou um texto donde constem. Contudo, a doutrina, a jurisprudência e a prática entendem que ela tem em vista os princípios cooperativos comummente aceites e acolhidos entre nós ao longo de uma experiência e de uma tradição cooperativista que remonta a mais de um século; e, apesar de algumas evitáveis flutuações legislativas, são eles os que explicita e desenvolve o artigo 3.º do Código Cooperativo. Recordando: 1) a adesão livre; 2) a gestão democrática; 3) o juro limitado ao capital; 4) a participação económica, com repartição dos excedentes; 5) o 4 https://diariodarepublica.pt/dr/geral/legislacao-relevante/declaracao-universal-direitos-humanos fomento da educação; 6) a colaboração entre as cooperativas. Dever-se-á então admitir que, ao aludirem a princípios cooperativos, aqueles preceitos constitucionais procedem a uma receção — e, mesmo a uma receção formal (se bem que não totalmente similar à da Declaração Universal dos Direitos Humanos4, prevista no artigo 16.º, n.º 2 da Constituição). Não se tratará de mera remissão ou devolução para a lei: os princípios cooperativos não estão na disponibilidade do legislador, o seu sentido essencial impõe-se-lhe, ele não os poderia afetar ou substituir. Tratar-se-á, sim, de uma normatividade de origem consuetudinária, com uma relevância direta na interpretação e na integração das normas constitucionais. Recebidos assim pela Constituição, tais princípios vêm, por uma parte, condicionar todos os agentes económicos que pretendam constituir cooperativas e usufruir do seu estatuto e, por outra parte, limitar a margem de decisão do órgão legislativo (a Assembleia da República ou, se autorizado, o Governo). Por decorrência destes princípios e das normas constitucionais transcritas, a iniciativa cooperativa exerce-se em três níveis: no da liberdade da formação, no da liberdade de organização e gestão e no da liberdade de agrupamento. Exerce-se em termos mais amplos do que os relativos à iniciativa privada, uma diferença de tratamento assente no desígnio democrático e de efetivação dos direitos económicos, sociais e culturais assumido pela Lei Fundamental (artigos 2.º e 9.º, alínea d)] e no objetivo de subordinação do poder … os princípios cooperativos comummente aceites e acolhidos entre nós são 1) a adesão livre; 2) a gestão democrática; 3) o juro limitado ao capital; 4) a participação económica, com repartição dos excedentes; 5) o fomento da educação; 6) a colaboração entre as cooperativas. … o que caracteriza o setor cooperativo e social é, não já a natureza da propriedade dos meios de produção, mas sim o modo como os meios de produção são organizados e geridos … [constituindo] um domínio privilegiado para … a realização da democracia económica e social.

18 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 32 DEZEMBRO 2024 – Cooperativas económico ao poder político democrático [artigo 80.º, alínea a)]. Como refere Rui Medeiros5, o que caracteriza o setor cooperativo e social é, não já a natureza da propriedade dos meios de produção, mas sim o modo 5 Anotação in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, II, 2.ª edição, Lisboa, 2018, p.57 como os meios de produção são organizados e geridos. Nesta perspetiva, ele constitui um domínio privilegiado para, cumprindo o objetivo plasmado no artigo 2.º, assegurar, na organização e na gestão dos meios de produção, a realização da democracia económica e social.

19 Evolução da cooperação agrícola em França e desafios futuros PHILIPPE DUCLAUD* E JEAN-BAPTISTE FAURÉ** * Diretor-Geral para o Desempenho Económico e Ambiental das Empresas, Ministério da Agricultura e da Soberania Alimentar, França ** Conselheiro para os Assuntos Agrícolas na Península Ibérica Embora o quadro jurídico do setor cooperativo agrícola francês, tal como o conhecemos hoje, date da reconstrução do país após a Segunda Guerra Mundial, os princípios cooperativos têm as suas origens em tempos muito anteriores. A formalização de uma ação comum por via das cooperativas no final do século XIX constituiu assim “um prolongamento ou uma reedição de antigas solidariedades, tanto familiares como comunitárias” (Mignemi, 2017). As primeiras cooperativas modernas surgem ligadas à revolução industrial, como mostram os textos dos seus promotores, nomeadamente o filósofo social Charles Fourier (17721837). As cooperativas agrícolas integram estas dinâmicas de desenvolvimento, mas rapidamente adotam uma evolução singular, distinta da dos outros setores económicos. Muitas vezes criadas em resposta a crises agrícolas, nomeadamente no setor vitivinícola, as primeiras cooperativas agrícolas assumem a forma de sindicatos profissionais. Ao mesmo tempo que organizam a defesa e a representação dos seus membros, estes sindicatos assumem também atividades económicas coletivas e lucrativas. Em 1947, o legislador consagra na lei os princípios cooperativos, já com provas dadas e imbuídos dos ideais da economia social: as regras que regem o modelo cooperativo estabelecem uma relação baseada em obrigações recíprocas entre o agricultor e a sua cooperativa. Esta pertence a todos os agricultores que a constituem. A governação da cooperativa rege-se pela regra democrática “um homem, um voto”: cada agricultor é colocado em pé de igualdade, independentemente da dimensão da sua participação, e vota nas decisões que regem a vida da cooperativa nas assembleias gerais. Em contrapartida, o cooperador compromete-se a entregar a totalidade ou parte da sua produção à cooperativa (de acordo com a regra de contribuição total ou parcial definida nos respetivos estatutos), a abastecer-se junto da cooperativa para satisfazer as suas necessidades de produção ou de serviços, consoante o tipo de cooperativa agrícola e o princípio do compromisso de contribuição. É importante notar que uma mesma cooperativa pode desenvolver várias atividades em benefício dos seus membros, combinando, por exemplo, serviços de abastecimento, de transformação e de comercialização. Esta diversidade As cooperativas agrícolas integram estas dinâmicas de desenvolvimento, mas rapidamente adotam uma evolução singular, distinta da dos outros setores económicos … Ao mesmo tempo que organizam a defesa e a representação dos seus membros, estes sindicatos assumem também atividades económicas coletivas e lucrativas.

20 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 32 DEZEMBRO 2024 – Cooperativas reflete a capacidade de adaptação e a polivalência do modelo cooperativo no setor agrícola. As cooperativas agrícolas beneficiam de um quadro jurídico específico, decorrente dos princípios estabelecidos pela lei de 1947, que lhes confere um carácter sui generis, distinto do das outras sociedades cooperativas. Nos anos que se seguem à Segunda Guerra Mundial, o modelo cooperativo desempenha um papel inegável na rápida modernização do setor agrícola de que a França necessitava para recuperar a sua soberania alimentar. O aparecimento das estruturas particulares que são as Cooperativas de Utilização de Maquinaria Agrícola (CUMA) e a sua rápida expansão (mais de 11 000 destas estruturas em 1960) permitem a disseminação e a utilização das primeiras máquinas a um custo mais baixo, através da mutualização e, em última análise, a mecanização do setor agrícola. Durante este período de crescimento e de desenvolvimento, o número de cooperativas em França explode (15 000 em 1955, contra 2 000 em 1900) e a sua finalidade evolui. Além da proteção e defesa dos agricultores, as cooperativas passam também a desempenhar um papel na orientação e regulação da produção e, no último terço do século XX, na modernização do setor para aumentar a produção e a eficiência dos fatores capital e trabalho nas explorações (Valiorgue, 2020). Pouco a pouco, o movimento cooperativo vai estruturar-se e agrupar-se em diversos grandes atores nacionais que, hoje integrados em agrupamentos ainda mais vastos, continuam a dominar o mercado francês. Atualmente, o cooperativismo agrícola continua a ser um ator importante no setor agroalimentar francês. 75% dos agricultores pertencem a uma das 2 100 sociedades cooperativas agrícolas ou 11 000 CUMA presentes em todo o território. Estas estruturas geram um total de 190 000 empregos e um volume de negócios consolidado de 118 mil milhões de euros em 2023, ou seja, quase 40% do volume de negócios do agroalimentar. Por exemplo, seis em cada dez marcas de produtos alimentares pertencem a cooperativas e uma em cada duas garrafas de vinho provém de adegas cooperativas. As cooperativas desempenham um papel essencial na estruturação das fileiras agrícolas, graças à sua atividade em quase todos os tipos de produção e à sua quota de mercado dominante em várias dessas fileiras (90% na carne de suíno, 85% na transformação de beterraba sacarina, 60% na produção de aves de capoeira, 55% na recolha de leite, ...). Devido à sua implantação, as cooperativas são um instrumento de ordenamento do território e uma alavanca importante do dinamismo económico e social das zonas rurais. Segundo a Coopération Agricole (associação nacional das cooperativas em França), as cooperativas são o primeiro empregador privado nos territórios rurais. Como não podem ser deslocalizadas, estabelecem e desenvolvem a sua atividade nas zonas onde estão implantadas e criam empregos diretos e indiretos desde a montante da produção até à transformação e venda de produtos acabados. Neste sentido, as cooperativas constituem uma defesa contra o declínio das zonas rurais. Permanecem muitas vezes ativas em zonas onde as empresas privadas tradicionais têm pouca ou nenhuma presença, devido à falta de rentabilidade. É o caso, nomeadamente, do setor leiteiro: as cooperativas são, por vezes, as últimas a recolher o leite quando as condições de recolha se tornam demasiado onerosas, ou quando o número reduzido de produtores já não permite a otimização das instalações de transformação, como acontece nas zonas de montanha. Ao manterem uma atividade económica nas zonas rurais, as cooperativas ajudam a preservar o saber-fazer e contribuem indiretamente para a sobrevivência de serviços fundamentais e de uma Devido à sua implantação, as cooperativas são um instrumento de ordenamento do território e uma alavanca importante do dinamismo económico e social das zonas rurais. Perante a intensificação da concorrência internacional, entre 1990 e 2010, as cooperativas francesas iniciaram um processo de concentração e constituição de filiais …

Evolução da cooperação agrícola em França e desafios futuros 21 vida coletiva. Devido a estas especificidades e ao seu papel essencial no mundo agrícola, as sociedades cooperativas agrícolas beneficiam de um regime fiscal adaptado à natureza das suas atividades. Perante a intensificação da concorrência internacional, entre 1990 e 2010, as cooperativas francesas iniciaram um processo de concentração e constituição de filiais, possibilitado pela evolução gradual do quadro jurídico destinado a compensar a sua fraqueza estrutural em termos de capitais próprios. Por exemplo: a lei de 1983 autorizou as cooperativas a emitirem títulos “participativos” que oferecem um retorno ao investidor não cooperador sem direito de voto; as leis de 1991-92 aproximaram as cooperativas de outros tipos de estruturas e reforçaram o investimento cooperativo a jusante na cadeia de valor. Esta estratégia de concentração confere vantagens competitivas em termos de economias de escala, permite o reforço do poder negocial dos produtores e fomenta a capacitação em termos de investigação e desenvolvimento. O processo de concentração acelerou-se nos últimos 20 anos, resultando simultaneamente num aumento significativo do volume de negócios global das cooperativas (65 mil milhões de euros em 2000 e 118 mil milhões de euros em 2023, um aumento de 84%) e numa queda igualmente significativa do número de sociedades cooperativas agrícolas (3 700 estruturas em 2000 contra 2 100 em 2023, excluindo as CUMA, ou seja, uma queda de -43%). O desenvolvimento de certas cooperativas passa cada vez mais pela criação de filiais, nomeadamente no estrangeiro, o que gera um aumento dos volumes de produção: 55% das cooperativas têm pelo menos uma filial e 6 grupos cooperativos franceses têm um volume de negócios consolidado superior a 5 mil milhões de euros. Questões suscitadas pela evolução das cooperativas e respostas dadas em França A expansão destas estruturas tem vindo a ser acompanhada de um debate legítimo sobre a sua governação, a qualidade da informação prestada aos agricultores cooperadores e a sua participação na gestão destas organizações que se tornaram complexas e multinacionais. Este debate decorria já no mundo agrícola na década de 1950 (Valiorgue, 2020). Uma das respostas dos poderes públicos franceses a este questionamento foi a criação, em 2006, do Haut Conseil de la Coopération Agricole (Conselho Superior da Cooperação Agrícola). Este organismo público, financiado pela filiação obrigatória das cooperativas, tem por objetivo contribuir para a definição e a aplicação de políticas públicas em matéria de cooperativismo agrícola e, nomeadamente, a emissão de homologações que reconheçam a estas estruturas a qualidade de cooperativas agrícolas. Enquanto garante do cumprimento dos textos e das regras que regem as cooperativas agrícolas, o Conselho é também responsável pelo acompanhamento da evolução económica e financeira do setor cooperativo. Além disso, é este organismo que define as normas do procedimento de “Auditoria cooperativa”. Já previsto na lei de 1947, este controlo quinquenal destina-se a verificar se a organização e o funcionamento das cooperativas estão em conformidade com os princípios e as regras do cooperativismo e com os interesses dos seus membros e, se necessário, propor medidas corretivas. Mais recentemente ainda, o legislador criou a figura do Mediador da Cooperação Agrícola, que pode ser chamado a resolver qualquer litígio entre um associado-cooperador e a cooperativa a que pertence, ou entre cooperativas e/ou uniões de cooperativas. O mediador toma todas as iniciativas O processo de concentração acelerou-se nos últimos 20 anos, resultando simultaneamente num aumento significativo do volume de negócios global das cooperativas … e numa queda igualmente significativa do número de sociedades cooperativas agrícolas … A expansão destas estruturas tem vindo a ser acompanhada de um debate legítimo sobre a sua governação, a qualidade da informação prestada aos agricultores cooperadores e a sua participação na gestão destas organizações que se tornaram complexas e multinacionais.

22 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 32 DEZEMBRO 2024 – Cooperativas suscetíveis de promoverem a resolução amigável do litígio entre as partes. A mediação é gratuita e confidencial e requer o acordo de ambas as partes. Dado o seu papel central em termos de economia, emprego e dinamização do mundo rural, as cooperativas francesas são também fortemente afetadas pelas crises e desafios que atingem todo o setor agrícola. As dificuldades e as questões colocadas pela globalização das trocas agrícolas, os conflitos comerciais e geopolíticos que põem em evidência o caráter estratégico da soberania alimentar, as alterações climáticas que provocam uma diminuição da produção e exigem uma ação decidida do mundo agrícola e nova regulamentação, a concorrência da produção de países terceiros sujeita a regras diferentes, a rápida evolução das exigências da sociedade e a crescente incompreensão entre o mundo rural e o mundo urbano são apenas alguns exemplos destas dificuldades que se põem ao modelo cooperativo. Mais do que quaisquer outras, estas estruturas devem assim responder aos imperativos da sustentabilidade nas suas três componentes. Enquanto agentes económicos, devem garantir a sustentabilidade económica e ambiental dos seus modelos, integrando nas suas estratégias de desenvolvimento as exigências cada vez mais fortes da sociedade, como o bem-estar animal, a inovação, a qualidade sanitária dos produtos, a redução do impacto sobre o ambiente e a biodiversidade, os preços baixos e os circuitos de distribuição curtos. Enquanto atores implantados nos territórios rurais, devem garantir a sua sustentabilidade social, esforçando-se constantemente por melhorar a distribuição de valor ao longo de toda a cadeia agroalimentar, nomeadamente ao nível do agricultor, que é frequentemente o elo mais vulnerável. Por último, devem contribuir para tornar a profissão mais atrativa e garantir um futuro aos produtores, em resposta à crise de renovação geracional que afeta o setor. Relativamente a estes últimos pontos, os princípios que regem as cooperativas, embora antigos, parecem particularmente bem-adaptados para orientar as transformações necessárias. Em conclusão, a evolução contínua do modelo cooperativo desde as suas origens parece estar longe de ter terminado. Os desafios que se colocam atualmente ao mundo agrícola exigem respostas ajustadas e equilibradas por parte destes atores particulares e um acompanhamento dos poderes públicos para, se necessário, adaptar o quadro jurídico, como vem acontecendo há mais de 70 anos. Estas adaptações deverão preservar as especificidades que progressivamente fizeram deste modelo um instrumento de proteção dos agricultores, de modernização, depois de orientação da produção e, finalmente, de conquista dos mercados agroalimentares internacionais. A convergência de interesses que une os membros e as suas cooperativas deve continuar a ser o valor fundamental que permitirá acompanhar de forma útil o setor agrícola nas suas indispensáveis transições, tal como aconteceu perante os desafios do passado. Referências Valiorgue B., Bourlier-Bargues E., Hollandts X., 2020, Quelles évolutions de la raison d’être des coopératives agricoles françaises? Regard historique sur un construit social, RECMA n°358. Mignemi N., 2017, Coopératives et mondes agricoles: France et Italie (1880-1950), Presses universitaires de Rennes. Dedieu M., Courleux F., 2011, Les coopératives agricoles: un modèle d’organisation économique des producteurs, Analyse CEP n°36. Rapport d’information n.°5040 sur le secteur coopératif dans le domaine agricole, 2022, Assemblée Nationale. Observatoire économique et financier, Haut Conseil de la Coopération Agricole, 9.ª edição, 2024 Os desafios que se colocam atualmente ao mundo agrícola exigem respostas ajustadas e equilibradas … para, se necessário, adaptar o quadro jurídico. Estas adaptações deverão preservar as especificidades que progressivamente fizeram deste modelo um instrumento de proteção dos agricultores, de modernização, depois de orientação da produção e, finalmente, de conquista dos mercados agroalimentares internacionais.

Evolução da cooperação agrícola em França e desafios futuros 23 Evolutions de la coopération agricole en France et défis à venir PHILIPPE DUCLAUD* ET JEAN-BAPTISTE FAURÉ** * Directeur général de la performance économique et environnementale des entreprises, Ministère de l’agriculture et de la souveraineté alimentaire, France ** Conseiller aux affaires agricoles pour la péninsule ibérique Si le cadre juridique du secteur coopératif agricole français tel qu’on le connaît aujourd’hui date de la reconstruction du pays suite à la seconde guerre mondiale, les principes coopératifs trouvent leurs origines dans des temps bien plus anciens. La formalisation d’une action commune via des coopératives vers la fin du XIXe siècle constitue ainsi « un prolongement ou une réédition des solidarités anciennes, tant familiales que communautaires » (Mignemi, 2017). Les premières coopératives modernes apparaissent en lien avec la révolution industrielle, comme en atteste les écrits de leurs promoteurs comme le philosophe social Charles Fourier (1772-1837). Les coopératives agricoles s’inscrivent dans ces dynamiques de développement, mais elles adoptent rapidement une évolution singulière, distincte des autres secteurs économiques. Souvent créées en réaction à des crises agricoles, notamment dans le secteur viticole, les premières coopératives agricoles prennent la forme de syndicats professionnels. Ces syndicats, tout en organisant la défense et la représentation de leurs membres, assument également des activités économiques collectives et lucratives. En 1947, le législateur consacre dans la loi des principes coopératifs déjà éprouvés et imprégnés des idéaux de l’économie sociale : les règles qui régissent le modèle coopératif dessinent une relation faites d’obligations réciproques entre l’agriculteur et sa coopérative. Celle-ci appartient à l’ensemble des agriculteurs qui la composent. La gouvernance de la coopérative est régie par une règle démocratique, celle d’« un homme égal une voix » : chaque agriculteur est placé sur un pied d’égalité, indépendamment du volume de participation apporté à la coopérative et vote les décisions qui régissent la vie de la coopérative lors des assemblées générales. En contrepartie, l’associé coopérateur s’engage auprès de sa coopérative : à livrer tout ou partie de sa production (selon la règle d’apport, total ou partiel, défini dans le statut de la coopérative), à s’approvisionner pour ses besoins de productions ou se fournir en services auprès de la coopérative, selon le type de coopérative agricoles et le principe de l’engagement d’apport. Il est important de noter qu’une même coopérative peut cumuler plusieurs activités au bénéfice de ses associés coopérateurs, en combinant par exemple des services d’approvisionnement, de transformation, et de commercialisation. Cette diversité reflète l’adaptabilité et la polyvalence du modèle coopératif au sein du secteur agricole. Les coopératives agricoles bénéficient d’un cadre juridique spécifique, issu des principes établis par la loi de 1947, qui leur confère un caractère sui generis distinct des autres sociétés coopératives. Dans les années qui suivent la seconde guerre mondiale, le modèle de la coopération va participer de manière indéniable à la modernisation rapide du secteur agricole dont la France a besoin pour renouer avec sa souveraineté. L’émergence des structures particulières que sont les Coopératives d’Utilisation de Matériel Agricole (CUMA) et leur fort développement (plus de 11 000 de ces structures en 1960) permettront, par la mutualisation, la diffusion et l’utilisation à moindre coût des premières machines et, in fine, la mécanisation du secteur agricole. Cette période de croissance et de développement va voir le nombre de coopératives exploser en France (15 000 en 1955 contre 2000 en 1900) et provoquer l’évolution de leur raison d’être. A la fonction de protection et de défense des agriculteurs, s’ajoute ainsi celle de l’orientation et la régulation de la production, puis dans le dernier tiers du XXème siècle celle de la modernisation du secteur afin d’augmenter la production et l’efficience des facteurs capital et travail dans les exploitations (Valiorgue, 2020). Peu à peu, le mouvement coopératif va se structurer et se regrouper en plusieurs grands acteurs nationaux qui, aujourd’hui intégrés dans de plus grands ensembles, dominent toujours le marché français. La coopération agricole est aujourd’hui encore un acteur majeur du secteur agroalimentaire français. 75% des agriculteurs adhèrent à une des 2 100 sociétés coopératives agricoles ou 11 000 CUMA présentes sur le territoire. Ces structures génèrent un total de 190 000 emplois, un chiffre

24 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 32 DEZEMBRO 2024 – Cooperativas d’affaires consolidé de 118 Md€ en 2023, soit près de 40% du chiffre d’affaires de l’agroalimentaire. A titre d’exemple, six marques alimentaires sur dix appartiennent à des coopératives et une bouteille de vin sur deux est issue de caves coopératives. Le rôle des coopératives est essentiel dans la structuration des filières agricoles, grâce à leur activité dans quasiment tous les types de production et leur part de marché prépondérante dans un certain nombre de ces filières (90% en viande porcine, 85% en transformation betterave-sucre, 60% en production avicole, 55% en collecte de lait…). Par leur implantation, les coopératives sont un outil d’aménagement du territoire et un levier majeur du dynamisme économique et social des zones rurales. Selon la Coopération Agricole, (l’association nationale représentative des coopératives en France), les coopératives seraient même le premier employeur privé des territoires ruraux. Non délocalisables, elles fixent et développent l’activité dans les territoires où elles sont implantées et elles créent des emplois directs et indirects depuis l’amont de la production jusqu’à la transformation et la vente de produits finis. En cela, les coopératives constituent un rempart contre la dévitalisation des zones rurales. Elles demeurent bien souvent actives dans des zones où les entreprises privées classiques sont peu implantées, voire absentes, par manque de rentabilité. C’est le cas notamment dans la filière laitière : les coopératives sont parfois les dernières à collecter le lait lorsque les conditions de collecte deviennent trop onéreuses ou quand le faible nombre de producteurs ne permet plus l’optimisation des outils de transformation, comme en zones de montagne. En maintenant une activité économique dans les zones rurales, les coopératives contribuent à la conservation de savoir-faire et participent indirectement à la survivance de services fondamentaux et d’une vie collective. En raison de ces spécificités et de leur rôle essentiel dans le monde agricole, les sociétés coopératives agricoles bénéficient d’un régime fiscal adapté à la nature de leurs activités. Face à l’intensification de la concurrence internationale les coopératives françaises se sont engagées dans les années 1990 à 2010 dans un processus de concentration et de filialisation, rendu possible par l’évolution progressive du cadre juridique visant à pallier leur faiblesse structurelle en fonds propres. A titre d’exemple, la loi de 1983 a autorisé les coopératives à émettre des titres « participatifs » offrant une rémunération à l’investisseur non coopérateur sans droit de vote ; les lois de 1991-92 ont permis de rapprocher les coopératives avec d’autres types de structures et de renforcer l’investissement des coopératives dans l’aval des filières. Cette stratégie de concentration leur assure des avantages concurrentiels en termes d’économies d’échelle, de renforcement du pouvoir du producteur sur le marché, d’accroissement des capacités en termes de recherche et développement. Le processus de concentration s’accélère depuis 20 ans, provoquant à la fois une élévation importante du chiffre d’affaires global des coopératives (65 Md€ en 2000 et 118 Md€ en 2023, soit une augmentation de 84%) et une diminution tout aussi significative du nombre de sociétés coopératives agricoles (3 700 structures en 2000 contre 2 100 en 2023 hors CUMA, soit – 43%). Le développement de certaines coopératives passe de plus en plus par l’acquisition de filiales en particulier à l’étranger générant l’augmentation des volumes de production : ainsi, 55% des coopératives ont au moins une filiale, et 6 groupes coopératifs français affichent des chiffres d’affaires consolidés à plus de 5 Md€. Les questions posées par l’évolution des coopératives et les réponses apportées en France L’agrandissement de ces structures s’accompagne du débat légitime sur leur gouvernance, sur la qualité de l’information fournie aux agriculteurs associés coopérateurs et sur leur implication dans la gestion de ces structures devenues complexes et multinationales. Ce débat interrogeait déjà le monde agricole dans les années 50 (Valiorgue, 2020). Une réponse qu’ont apporté les pouvoirs publics français à ce questionnement a été la création en 2006 du Haut Conseil de la Coopération Agricole. Cet établissement public, financé par l’adhésion obligatoire des coopératives, a pour objectif de contribuer à la définition et à la mise en œuvre des politiques publiques en matière de coopération agricole et notamment de délivrer l’agrément reconnaissant à ces structure la qualité de coopérative agricole. Garant du respect des textes et des règles de la coopération agricole, il est aussi tenu d’assurer le suivi de l’évolution économique et financière du secteur coopératif. De plus, c’est cet organisme qui définit les normes de la procédure dite de la « Révision coopérative ». Déjà présent dans la loi de 1947, ce contrôle quinquennal est destiné à vérifier la conformité de l’organisation et du fonctionnement des coopératives aux principes et aux règles de la coopération et à l’intérêt des adhérents, et, le cas échéant, à leur proposer des mesures correctives. Plus récemment encore, le législateur a créé la fonction du Médiateur de la coopération agricole, qui peut être saisi pour tout litige entre un associé-coopérateur et la coopérative à laquelle il adhère, ou entre coopératives et/ou unions de coopératives. Il prend toute initiative de nature à favoriser la résolution amiable du litige entre les parties. La médiation est réalisée de façon gratuite et confidentielle et nécessite l’accord des deux parties.

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