CULTIVAR 26 - Agricultura biológica e outros modos de produção sustentável

114 CADERNOS DE ANÁLISE E PROSPETIVA CULTIVAR N.º 26 SETEMBRO 2022 – Agricultura biológica e outros modos de produção sustentável tativa e erro que se vai desenrolando numa sucessão de acasos e necessidades, no caso da Terra há 4,5 mil milhões de anos, no caso da vida há 4 mil milhões de anos, no caso do Homo sapiens há cerca de 300 mil anos. Neste último caso, com um período quase ínfimo (200 anos) de desenvolvimento acelerado, que envolveu um aumento inédito de complexidade na cadeia evolutiva, gerando enormes transforma- ções para o ser humano a nível económico, social e ambiental e provocando um crescimento expo- nencial da população humana (e das populações de certos animais e plantas), bem como alterações significativas e visíveis no planeta. Estas são inéditas apenas na forma, já que a Terra passou por transfor- mações bemmais radicais ao longo de toda a sua his- tória. 3 Será talvez esta diferença de tempos históricos que nos faz cometer certos erros de perspetiva. 4 Se for verdade que estamos numa “encosta escorregadia” ( slippery slope ), quem escorrega somos nós, huma- nos, e não o universo connosco, mesmo que não sai- bamos o que seja umuniverso sem “nós”. No entanto, é também preciso não esquecer que sem as diversas revoluções agrícolas, sem revolução científica, sem revolução industrial, sem revolução tecnológica, sem diversas revoluções sociais, muitos de nós não esta- ríamos cá e a espécie não teria tido o extraordinário sucesso que teve, para o “bem” e para o “mal”. Em setembro de 1962, há precisamente 60 anos, foi publicada esta Primavera Silenciosa que rapida- mente e por diversas circunstâncias se tornou um best-seller nos Estados Unidos, sendo depois tra- duzida em diversos países. A autora, Rachel Carson (1907-1964), era uma bióloga marinha que já tinha escrito alguns livros muito populares sobre a nossa relação com os mares. 3 O comediante George Carlin di-lo de uma forma mais divertida (e ácida) na sua rábula “Saving the Planet”: https://www.youtube.com/wat- ch?v=7W33HRc1A6c; e o biólogo David G. Haskell de uma forma mais poética e científica: “ A convicção de que a natureza é umOutro, um reino separado conspurcado pela marca não natural dos humanos, é uma negação do nosso próprio ser selvagem. O passeio de cimento, o vómito de líquidos da fábrica de tintas ou os documentos que planeiam o crescimento da cidade de Denver, emergindo da evolução das capacidades mentais de primatas que manipulam o seu ambiente, são tão naturais como o tamborilar das folhas do choupo, o chamamento à família do jovemmelro-d’água ou o ninho da andorinha-de-dorso-acanelado./ Saber se todos estes fenómenos naturais são sábios, belos, justos ou bons é uma questão diferente, mas essas perplexidades serão mais bem resolvidas por seres que compreendem que são eles mesmos natureza .” (no livro As canções das árvores , https://dghaskell.com/about/) 4 Carl Sagan e muitos outros antes e depois dele falaram da infância ou da adolescência da humanidade. Talvez os erros de perspetiva tenham simplesmente origem nessa imaturidade da espécie. Embora os movimentos sociais de preocupação ambiental remontem ao século XIX, com a revolu- ção industrial, foi a explosão económica e tecnoló- gica do pós-Segunda Guerra Mundial que gerou um maior ativismo neste domínio, produzindo também mais investigação científica, já nas décadas de 1940 e 50, mas sobretudo nas de 60 e 70. A publicação desta obra não foi, pois, um trabalho solitário, nem o seu lançamento ocorreu sem preparação. A autora demorou mais de quatro anos a pesquisar o mate- rial para o livro, sabendo que iria ser alvo de grande escrutínio. Esse trabalho de investigação não foi facilitado pela circunstância de se tratar de umamulher cientista em tempos de pós-guerra, guerra fria e ameaça nuclear. Além disso, o livro foi escrito em condições pessoais muito difíceis de sofrimento físico e psíquico, com diversas tragédias familiares e doença própria, que a autora, uma mulher discreta que se tornaria uma ativista relutante, procurou esconder do público para evitar a vitimização. As interações entre uma utilização ubíqua de pro- dutos químicos e o ambiente também não eram novidade e nesses quatro anos de pesquisa, Carson falou com muitos cientistas que estavam cientes do problema, publicando artigos em revistas especiali- zadas. Na agricultura, as posições dividiam-se entre os que exigiam provas concludentes que atestassem os possíveis perigos do uso de certos pesticidas, e os que aceitavam que podiam existir danos e esta- vam dispostos a considerar a utilização de métodos alternativos, como o controlo biológico de pragas (mesmo sabendo-se que também este não é uma panaceia).

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