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cadernos de análise e prospetiva CULTIVAR

N.º 9

SETEMBRO 2017

26

que a terra à nossa volta

produz, isso é recebido com

surpresa.

Entrevistei também Gas-

tón Acurio e percebi por-

que é que ele é uma perso-

nagem tão carismática, capaz de mobilizar um país

inteiro e, pelo menos na altura, com uma populari-

dade muito superior à de qualquer político. Disse-

-me ele: “Isto é só o começo de um grande plano

que vai demorar ainda muito tempo e que nasce

da sã, justa e compreensível indignação dos jovens

peruanos, que não entendem porque é que um país

tão rico, com tantos recursos, tanta história, tantas

oportunidades, continua a ser considerado como

do Terceiro Mundo, apenas

exportador de matérias-

-primas. Esses jovens pen-

sam que podem contribuir

de alguma forma para que

isso mude.”

Homens como Gastón Acurio e Bernardo Roca Rey

perceberam que a cozinha podia ser o tema que

uniria todos os peruanos. “É uma atividade que

toca a todos: agricultura, pesca, indústria, meio

ambiente, os negócios, a promoção de um país no

mundo, a cultura, a arte.” Apesar de ser ele próprio

um

chef

famoso, Gastón Acurio não está a falar aqui

da promoção de restaurantes ou de

chefs

-estrela. A

ideia é muito mais profunda – e generosa.

“Se olhas para a cozinha

apenas como um espaço

lúdico, de prazer, se não te

importas com o que está à

tua volta, então, sim, tra-

ta-se apenas de comer,

de desfrutar, para os que

podem pagar”. Num país

como o Peru, explicou

Acurio, “onde a riqueza choca permanentemente

com a pobreza, onde o prazer pode tornar-se imo-

ral porque há crianças que

sofrem de má-nutrição, foi

mais fácil os cozinheiros

reconhecerem que a cozi-

nha tinha que ser algo mais

do que dar de comer aos

poucos que podem pagar.”

Um exemplo prático, entre muitos outros que relato

nesse artigo: “Num dos fóruns de debate do Festi-

val Mistura, a ministra do Desenvolvimento e Inclu-

são Social, Carolina Trivelli, sentou-se no palco para

falar da necessidade de ‘comer saudável, comer o

que é nosso’. ‘Não queremos apenas que as crian-

ças comam bem, mas que sejam portadoras das

tradições das suas regiões. Os grãos andinos estão

no centro desta estraté-

gia’, declarou Trivelli, que

dias depois assinaria com

a Apega um acordo para

que vários produtos andi-

nos, nomeadamente a qui-

noa, fossem introduzidos nas ementas das escolas.

‘É fundamental a aliança com os produtores locais

e os cozinheiros. As nossas crianças precisam de

saber de onde vêm os alimentos.”

Gastón Acurio reforçou a ideia: “Há milhares de

anos construiu-se no Peru uma biodiversidade

em que as pessoas tinham segurança ambiental.

Não havia crianças subnutridas porque comiam o

que tinham. Depois veio o

marketing

e disse que

tinham de beber leite e

comer massa e as pessoas

começaram a abandonar a

quinoa e outros produtos.

As políticas públicas deram

ouvidos ao

marketing

e

os programas de assistên-

cia alimentar enviavam de

Lima para o resto do país

leite, açúcar, massa, arroz.

Hoje, está-se a recuperar cadeias produtivas locais

em dietas ricas, saudáveis, coerentes.”

… a cozinha podia ser o tema que uniria

todos os peruanos. “É uma atividade

que toca a todos: agricultura, pesca,

indústria, meio ambiente, os negócios,

a promoção de um país no mundo, a

cultura, a arte”.

… os cozinheiros reconhecer[a]m que a

cozinha tinha que ser algo mais do que

dar de comer aos poucos que podem

pagar

… um exemplo: o porco bísaro. Raça

autóctone do Norte do país, o porco

bísaro estava quase extinto em

Portugal… Em 1995, Carla Alves foi à

procura dos poucos animais que ainda

existiam e foi a partir desses exemplares

que se deu início a um trabalho de

recuperação da raça.